Álvaro Mutis



No dia em que se cumpriu 40 anos da morte de Pablo Neruda, o mundo da literatura ficou ao menos uma vez mais pobre – morreu António Ramos Rosa. Já um dia anterior foi a morte de outro escritor, Álvaro Mutis, de quem hoje, custa-nos assinalar algumas linhas sobre sua vida e sua obra; noutra ocasião, falaremos igualmente sobre o poeta português.

“Não sabemos nada da morte, é inútil falar dela, mas é bom ir-lhe invocando para mantê-la sob controle” – assim dizia Mutis sobre a morte, enigma com o qual se confrontou no fim da tarde de 22 de setembro, no alto de seus 90 anos, na Cidade do México, onde vivia desde 1956. Autor prolífico e conhecido pela série de romances com a personagem Maqroll el Gaviero, Mutis é um dos mais importantes nomes da literatura em língua espanhola na América Latina. 

O limite da sua obra, entretanto, não se encerra no romance; foi importante nome também para a poesia. Segundo Bernardo Marín, “poeta da desesperança e do desterro, em sua obra a natureza indômita do trópico é metáfora para a deterioração do tempo e da natureza humana.” O próprio protagonista, Maqroll, espécie de seu alter ego, um solitário viajante errante, que entre portos e hotéis sobrevive, num eterno vaivém errante de um velho barco, entre o efêmero e a plenitude do passado, representa esse instante temático da sua obra, patente, logo se vê, não apenas na poesia.

Álvaro Mutis nasceu em Bogatá a 25 de agosto de 1923; filho de diplomata, cursou seus primeiros estudos em internatos de Paris e Bruxelas. Quando da morte do pai, voltou para a Colômbia, onde trocou a faculdade pela poesia e pelo jogo de bilhar. Começou a trabalhar numa emissora de rádio como locutor de notícias e diretor de um programa cultural, emprego que foi substituído mais adiante por uma leva de outras funções em multinacionais que o transformou num viajante. Aí, mais uma característica sua revelada na roupagem do seu personagem Maqroll.

Álvaro Mutis como radialista, em 1957.

Os primeiros escritos vieram muito antes de tudo. Mas só foi encorajado a publicar depois de receber o apoio crítico de Casimiro Eiger, importante nome da cena literária na Colômbia; o ultimato teria sido dado entre “ou se publicam ou se queimam, não se guardam escritos”. Impulso suficiente para trazer a lume, em 1948, o primeiro título, La balanza, um conjunto variado de poemas escolhidos dentre os que já estavam escritos. Sabe-se que o conselho de Eiger foi de fato levado a sério pelo jovem porque muitos de seus manuscritos dessa época foram servir de alimento ao fogo.

La balanza não foi nenhum estardalhaço, essa “consequência literária” talvez só tenha tido mesmo quando da publicação desse conjunto de romances em torno da personagem que nunca lhe abandonou, Maqroll el Gaviero – personagem que aparece em 1953 em Los elementos del desastre. Até esse ano, Mutis esteve vinculado ao grupo da revista Mito, periódico dentre os quais mais colaborou e seguiu publicando poesia.

“El Gaviero vem de minhas leituras de [Joseph] Conrad, de [Herman] Melville (sobretudo de Moby Dick); é o tipo que está ali acima, na gávea, que me parece o trabalho mais belo que pode haver num barco, ali entre as gaivotas, frente à imensidade e na solidão mais absoluta” – dizia o escritor para explicar a presença do protagonista em sete de seus nove romances.

Álvaro Mutis com Fernando Botero e Gabriel García Márquez.

Quando se mudou para a capital do México, foi com várias cartas de recomendação, uma delas dirigidas ao cineasta Luis Buñuel, com quem conseguiu trabalho no mundo da publicidade. Nestes primeiros anos conheceu dois grandes amigos para a vida inteira, Octavio Paz e Carlos Fuentes. Mas, nem tudo foram rosas na ida para a Cidade do México: três anos depois de aí chegar foi preso no famoso Palácio Negro de Lecumberri acusado de desfalque à petroleira Esso. 

A prisão durou quinze meses e este tempo serviu a Mutis para a escrita de El diário de Lecumberri, publicado em 1960, livro que deu uma guinada na sua vida, até o ponto, como ele mesmo chegou a reconhecer, de que, sem essa experiência nem seus romances com Maqroll como personagem e nem sua poesia posterior haveriam existido. “Na prisão estamos diante da verdade absoluta, ante o fim da corda. Recordo-a como uma grande lição.”

Foi em Lecumberri que Mutis conheceu Elena Poniatowska, que ia sempre à prisão visitar presos políticos; em certa ocasião Mutis lhe pediu que lhe levasse os volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust e ela atendeu ao pedido. O encontro terminou em casamento; “Como pessoa [Mutis] era um homem muito alegre, a alma das festas, fazia perfeitas imitações de escritores, sobretudo de Neruda e todas as mulheres se apaixonavam por ele. com escritor, Maqroll nos deu a possibilidade der um mar no México e ele se converteu no Conrad latino-americano” – recorda a escritora.

Em 1978, publicou seu primeiro romance da série La nieve del Almirante.¹ A esse romance seguiram-se Ilona llega con la lluvia e La ultima escala del Tramp Steamer, todos editados por aqui, mas apenas o segundo título ainda em catálogo. A partir dessa série de romances vieram-lhe os prêmios literários: em 1997, recebeu o Prêmio Príncipe de Astúrias e quatro anos depois o Prêmio Cervantes, o mais importante galardão para a literatura de língua espanhola.

Passou os últimos anos numa espécie de retiro, dividido entre a família e as enfermidades, mas sem escusar-se de receber visitas e a imprensa. Nunca terá esquecido os anos primeiros de sua vida em Bogotá, terra que foi transplantada para sua obra diversas vezes. 

Notas:
1 Traduzido no Brasil como A neve do Almirante. Os demais citados neste parágrafo são: Ilona chega com a chuva e A última escala do velho cargueiro.

*

A seguir um recorte com três poemas de Álvaro Mutis. A ideia de ser Maqroll seu alter ego está justificada na abertura oferecida pelo próprio escritor no título empregado para a reunião da sua obra poética, em 1990: Summa del Maqroll el Gaviero.


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