A Pilar, que não o deixou morrer
Por Rafael Kafka
José e Pilar. Foto (detalhe) de Sebastião Salgado. |
Na
última sexta-feira do mês de agosto de 2013, mais precisamente no dia 30, houve
em Belém um evento de considerável importância para a literatura mundial:o
lançamento de dois livros inéditos de José Saramago, traduzidos para o idioma
português e publicados pela Editora da Universidade Federal do Pará (EDUFPA),
com total aval Pilar del Rio, companheira do escritor presidenta da fundação
que leva seu nome. Os livros em questão
são Da Estátua à Pedra e Democracia e Universidade (livros sobre os quais é possível saber
mais aqui, no texto de Pedro Fernandes). O evento ocorreu no Centro de
Eventos Benedito Nunes, um belo auditório que fica na rua principal da cidade
universitária do imenso campus da universidade na capital paraense.
A
tarde era chuvosa e a tempestade caída alguns minutos antes fizera até mesmo a
energia faltar em todo o local, o que me deixou preocupado. Imaginei logo os
riscos para a palestra a ser ministrada por ocasião dos lançamentos dos livros;
contudo, a organização pareceu se precaver e os geradores do auditório
funcionaram muito bem.
O
evento estava programado para as seis e meia. Antes dele, houve a exibição do
documentário de Miguel Gonçalves Mendes que narra a vida conjunta de José e Pilar
(também pode ler mais a respeito aqui); esse é um documentário que ainda não
tive a chance de ver integralmente. As cenas vistas por mim nesse evento
revelaram ainda mais a sublime poesia que emanava da singeleza de Saramago e
sua vida pessoal. A mesma singeleza estava no discurso de Pilar. Mas, estamos
pulando partes, eu creio.
Como
eu disse, antes do evento houve a exibição do documentário sobre o amor de
Saramago. Ao lado, uma imensa fila de fãs se reunia com seus cartões de
crédito, débito ou dinheiro contado para adquirir os dois livros. Mesmo sem a
lotação completa por conta do clima frio e dos contratempos, além de tudo a
universidade está em período de recesso, o público que compareceu ao centro de
eventos foi muito bom. Víamos pessoas das mais variadas faixas etárias: jovens,
adultos, pessoas mais idosas; mestres, graduados, doutores, estudantes de
Letras, Filosofia etc. Cada ser presente ali mostrava, ao menos para mim, o
tamanho imenso do alcance da poesia da obra de José: uma obra humana,
demasiadamente humana, como pude inferir das leituras feitas por mim e do
discurso feito por Pilar. Mas eu sinto de novo que estou a pular partes.
Pilar
mostrou-se incansável desde que entrou em meu raio de visão. Lá fora ocorria o
burburinho da compra dos livros e da exibição do documentário, enquanto ela,
dentro de uma sala reservada, falava com alguns jornalistas. Não sei sobre o
que conversaram, porém por alguns momentos eu desejei ter o status necessário
para sentar com uma lenda e falar com ela de igual para igual. Um dia quem
sabe?
O
evento começou com um atraso de dez minutos. Ao menos eu pus isso em minha
agenda. Tudo foi muito protocolar, com discursos sérios falando sobre a honra
de ter duas obras inéditas de Saramago editadas por uma editora do norte do
país. Afinal, todos sabemos do quase total monopólio tido pela Companhia das
Letras no concernente as obras do Nobel de 1998. O discurso de Simone Neno,
diretora da EDUFPA, tratou justamente de expor como todos ali estavam honrados
por conta desse projeto audacioso de mostrar um Saramago mais ensaísta. Houve
um belo relato das conversas tidas com Pilar, ainda em Portugal, sobre o
projeto de lançamento das duas obras.
Após
Simone se expressar, Horácio Schneider, vice-reitor da UFPA (reitor em
exercício devido a uma viagem do reitor Maneschi) expôs a sua leitura crítica
da obra de José Saramago, citando como preferências pessoais os títulos Intermitências
da Morte (há um texto do James Wood reproduzido aqui) e Ensaio Sobre a Lucidez (há uma resenha aqui). Em seu discurso, vemos já a reiteração da
presença fortemente humana das personagens saramaguianas, além da imensa gama
de temas abordados em seus romances. Um discurso belo, mas ainda longe do que
todos, ao menos eu julgava assim, consideravam à altura de José.
A
obra de Saramago é viva demais, intensa demais. Uma obra que fala de coisas
comuns a todos, porém com um olhar arguto, profundo, irônico e sempre crítico.
Uma obra que fala das coisas como elas foram captadas e filtradas pelo olhar do
escritor: um olhar vivo, questionador, amante da vida e dos seres humanos
comuns, heroicos por serem existentes. Por tudo isso, por esses efeitos simples
que geram o complexo, poucas pessoas são capazes de falar sobre Saramago de um
modo que me convença. O motivo é que escritores como ele não são ferramentas
academicistas, por maior que seja frequência com a qual seus romances hoje são
abordados em artigos, TCCs, etc. Para falar de Saramago deve-se ser
desassossegado: deve-se ler para ver a leitura como um jogo de viver, para se
ver o objeto lido discutindo conosco e com nossa percepção de mundo. Naquele
momento, então, apenas Pilar poderia falar de José como lhe era merecido, pois
ela viu o desassossego em pessoa enquanto livros como A viagem do elefante
eram produzidos. E ela, com uma leveza doce e amável, teve a capacidade de
falar com vida da obra de seu grande amor.
Ainda
tentaram colocá-la em um protocolo: um discurso seu traduzido para o português
para ser lido. Todavia, o que vimos foi Pilar em diversos momentos parar a
leitura e tecer algum comentário mais solto, mais seu, sobre a vida e a obra de
José. Vale ressaltar a presença sempre constante de um imenso bom humor em sua
postura, o que colabora para lhe dar uma aparência sempre jovial.
Em
seu discurso, ela ressaltou o modo pobre como Saramago cresceu e a imensa gama
de trabalhos os quais ele teve até poder finalmente se dedicar à literatura
exclusivamente. Devido a condições de vida bem simples, Saramago desde jovem,
sempre se escondeu em bibliotecas para absorver o conhecimento o qual a
universidade não poderia lhe dar. Podemos avaliar o porquê de seus livros terem
uma sabedoria concreta: eles falam das coisas de modo vivo, não teorizando, e
por isso têm uma força pungente.
Há
um destaque especial para Claraboia em suas palavras, mesmo este sendo
um romance pouco conhecido do autor e que ficou guardado durante anos, além de
um foco muito pertinente na atuação política de José Saramago, como nas lutas
contra a ditadura de Salazar.
Por
todos esses fatos, as obras de José valorizam o homem comum, anônimo, aquele
que se debruça sobre si mesmo e vivencia os mais profundos conflitos. Para
Saramago, como bem disse Pilar, o homem é o bem mais importante desta
existência e é o ser humano quem terá a principal força na obra do grande autor
português.
Creio
que me senti tocado pelas palavras de Pilar, pois a imagem da obra saramaguiana
a qual ela passou ao público é a mesma que eu possuo. Mas, o que mais me admirei
foi de seu jeito simples, firme, simpático, doce; o jeito de uma pessoa
reconhecedora de sua missão, de suas limitações e de seu brilho e graça.
Ao
final de sua palestra ainda houve um número musical o qual, acredito, todos
esperaram de forma ansiosa para que logo acabasse. Sabíamos que no final
haveria uma sessão de autógrafos e queríamos muito um registro, por menor que
fosse, da marca pessoal de Pilar del Río. Para isso, encaramos uma espera
longa: mais de duas horas até chegar a sua frente e receber o autógrafo. Uma
espera que era paralela a pensamentos bem absurdos: o que dizer a ela? Pedir um
abraço? Uma foto? Trocar palavras sobre o clima e a literatura?
Era
loucura... Eu teria pouco mais de um minuto, com sorte, para fazer tanta coisa.
No final, quando cheguei perto dela, desperdicei metade desse tempo em um
mutismo nervoso. Só depois criei coragem e perguntei se ela estava gostando de
nossa cidade, pergunta a qual ela respondeu com um empolgado “sim”. Depois eu
elogiei sua inteligência, citando uma resposta dela ao repórter do programa
televisivo CQC, Oscar Filho, em uma entrevista dado na ocasião do lançamento de
A viagem do elefante no Brasil. O comentário a fez sorrir.
Meus
autógrafos foram dados e meu tempo acabou. Meus amigos que estavam comigo e eu
fomos embora. Quase onze horas da noite. Cansados e satisfeitos. Afinal,
estivéramos até instantes antes com uma das mulheres mais fabulosas de nosso
tempo. Uma mulher cujo jeito repleto de uma singeleza bem humorada me passa a
certeza de quem sabe que não sabe tudo, mas sempre amante do conhecimento e das
palavras. Uma pessoa tão apaixonada por seu ser amado que não o deixa morrer,
como todo leitor apaixonado pelo querido José que há três anos nos deixou.
Saí
dali com uma certeza consoladora: não tive a chance de conhecer Simone de
Beauvoir, outra grande feminista parte integrante de um célebre casal da
literatura, dona de uma força e uma beleza ímpares. Contudo, tive a chance de
apertar a mão de Pilar del Río, uma mulher extremamente humana, como seu antigo
amor e suas personagens tão representativas desse ser mágico que vaga
poeticamente pelo mundo: o ser humano.
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