Quando falei com Quintana
Por André Bolivar
Nesse tempo remoto, as calçadas do centro de Porto Alegre
ainda sentiam as leves pisadas de Mario Quintana.
Talvez fosse outubro, certamente de 1980, era eu muito jovem
e daqueles meninos que quando jogavam bola na Redenção, esperavam a hora de
deitar e ler e, que quando liam, esqueciam que existia futebol.
Naquela tarde, passeava pela feira do livro com um exemplar
de Esconderijos do Tempo, capa meio amarelada, poemas breves, um tesouro em
minhas mãos, pois era o primeiro livro do Quintana que eu comprava; já tinha
doze anos e havia lido no Correio do Povo (jornal que circulava na época) uma
entrevista em que o poeta se declarava fã de Arthur Rimbaud.
Menino curioso, sócio da Biblioteca Pública, lá na minha
ficha de leitor, deixaram de escrever José Mauro de Vasconcelos e passaram a
preenchê-la com o nome de Rimbaud e tudo o que se relaciona a ele. Ali,
lembro-me de ficar espantado, pois pela primeira vez eu via impressa a palavra
merda. O poeta francês, certa vez – depois soube que costumeiramente –
interrompera a declamação de um poema que ele achara imensamente adocicado,
ponteando-o com a palavra merde cada vez que o declamador encerrava uma
estrofe. Bem, eu não entendi nada do que escreveu Rimbaud, mas certamente o
poeta-símbolo de Porto Alegre havia entendido muito bem, inclusive imaginei-o
repetindo baixinho merde, merde, em seu quarto de hotel.
Pois então, naquela tarde, na praça da Alfândega, entre
centenas de pessoas, com o livro debaixo do braço, catando o velho poeta,
rezando para que não chovesse, procurei um policial e perguntei se Quintana já
estava ali ou se ainda não havia chegado e mostrei-lhe o livro e contei do que
sofri para chegar até ali e quase chorei – lágrima que se força a expelir –
quando o guarda simplesmente apontou uma
aglomeração a cerca de cinquenta metros.
Meu ídolo estava em pé, cercado, autografando.
Ao me aproximar ouvi alguém dizendo, uma voz feminina, ele
está cansado, amanhã ele voltará, ele vai embora agora, está cansado. Aquelas
palavras me gelaram, eu só sairia dali com o livro autografado, ao menos com um
risco. Ninguém reclamou quando ele deu as costas e se foi, lentamente ,
abraçado pela mulher que o acompanhava, em direção a rua da Praia.
Eu, menino tímido, corri e parei em frente, ATRAVANCANDO o
caminho de ambos. Então tive aquela luz, que talvez tenhamos apenas uma vez na
vida, porque nas outras ocasiões só pensamos no que deveríamos ter feito, dito,
como ter agido, minutos depois.
– Seu Quintana, o Rimbaud mandou o senhor à merda!
No momento em que as palavras saíram da minha boca, entrou
em mim o vexame, a vergonha pela má educação, o calor pelo corpo, a náusea.
Mas o poeta abriu um sorriso realmente cansado, exausto e
disse, as palavras dançando na dentadura:
– Ganhei meu dia, guri!
Ato contínuo pegou o livro, pediu uma caneta a companheira,
que de cara de espanto passara a condescendência e perguntou o meu nome.
– André Bolívar, seu Quintana. Pode fazer uma dedicatória
bem bonita?
– Ah, não posso. Não sei fazer dedicatórias bonitas.
Escreveu, fechou o livro e me devolveu. Pasmo, um pouco
decepcionado, um pouco irritado, descrente desses poetas, abri o livro e ali
estava escrito:
“Ao meu amigo André
Bolívar, esta dedicatória feia, isso porque o anjo Malaquias, que é quem faz as
dedicatórias bonitas, está brincando neste exato momento. Mario Quintana. “
Estufei o peito ossudo, ajeitei os óculos, embaçados – água que
não se retém - e vi o poeta que já ia lá adiante, enquanto eu relia aquelas
palavras mágicas.Várias vezes. Até a chuva me trazer de volta a realidade.
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