O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago
Por Pedro Belo Clara
O autor da obra da obra em questão, como será
simples de deduzir, dispensa toda e qualquer apresentação prévia a seu
respeito. Ou não estivéssemos a falar do prémio Nobel da literatura de 1998 e
de um dos nomes mais incontornáveis das letras lusófonas, com lugar de merecido
destaque, arrisco a afirmá-lo, no palanque da literatura internacional.
Já a obra em si, na sua devida vez, cobre-se de um
longo manto de polémica religiosa. Isto deve-se não apenas ao tema que ela
aborda (perfeitamente perceptível, em linhas gerais, pela leitura da epígrafe
que ostenta), mas pela forma como o mesmo é, desde logo, abordado. De facto,
este trabalho mereceu fortes críticas por parte das altas esferas da
instituição a que respeita o assunto do mesmo. Talvez por esta obra ter
registado um impacto vibrante a nível nacional, eu mesmo, como colunista de
serviço, a traga aqui para discussão. Contudo, diga-se que, apesar de tanto
aparato, a crítica e a negação de que foi alvo este trabalho de José Saramago
não se revelaram factores de elevada força contraproducente no que à sua venda
diz respeito. Os leitores portugueses, curiosos ou não, nunca se demoveram
perante a polémica que se instalou. E a prova disso são as mais de trinta
edições que, desde a sua publicação, em 1991, a obra já conheceu. Afinal,
somente se sublinhou uma máxima tão antiga quanto certa: o maior crítico de um
escritor será sempre o seu atento leitor. Contudo, importa igualmente não
esquecer que foi graças a um veto por parte de um secretário de estado da
cultura, o que impediria a obra de concorrer a um prémio europeu, que Saramago
decidiu abandonar o país e se fixar, definitivamente, na ilha de Lanzarote, nas
Canárias (Espanha). O veto fora o resultado, como seria de esperar, de uma
constante pressão exercida por parte da Igreja Católica portuguesa junto do
governo da época.
Mas foquemo-nos na obra em si e naquilo que ela
nos traz. A história que conta, a essência mais pura desta trabalho, não nos é
totalmente estranha… Pelo menos, para aqueles que partilham ou cresceram
envoltos pelas crenças católicas. A própria miríade de filmes que sobre o tema
têm sido realizados, ao longo dos anos, lançam sobre o assunto a mesma luz
esclarecedora e, como tal, válida para o caso. Desde logo, na obra de Saramago,
destaca-se a clara intenção de humanizar a história do nazareno que hoje, entre
nós, é conhecido por Jesus Cristo. É de crer que, sob um certo prisma, tal
ideia é a mais notável inovação que Saramago introduz em seu trabalho,
claramente apresentada e defendida. Falamos, assim, de um Jesus humano, cujos
traços divinos apenas lhe foram concedidos por um Deus ávido, desejoso de
cumprir uma suprema tarefa: espalhar a sua fé pelos quatro cantos do mundo.
Para tal, como de forma óbvia se compreenderá, o sacrifício do homem que seria
visto como «o seu único filho» era absolutamente vital.
Ao entender Deus desta forma tão peculiar e
íntima, isto é, pessoal, Saramago, um confesso militante da linha ateísta, retrata
o suposto “divino” da mesma forma que a Bíblia o permite considerar: vingativo,
irascível, déspota, castrante. Logo aqui, eclode a primeira acha da polémica
que o obra instigou. Em derradeira instância, um choque de crenças e
realidades, um desfasamento entre humano e divino – como se de duas distintas
classes de tratassem, mas devidamente hierarquizadas. E fácil será entender
qual a que se coloca no topo e qual a que é alvo de pérfidas manipulações em
prol do bem supremo da sua elite.
Já a figura do outro interveniente principal, o
Diabo, é deveras curiosa. De forma quase que surpreende, surge revestido de uma
grande humanidade. Esqueçamos, portanto, os longos chifres, a cauda pontiaguda,
os pés de bode, o tridente em riste e as atemorizantes labaredas que exalam dos
fundos de tão diabólica figura. Aqui, Lúcifer, aquele que «leva a luz», é um
simples pastor que se confunde com um anjo. Inclusivamente, Jesus, sem saber de
suas origens, priva com tal personagem durante os primeiros anos da sua
adolescência até atingir a idade adulta. É ele que anuncia a Maria o nascimento
do seu primogénito; é ele que assume, mais tarde, o papel de um dos Reis Magos.
Preponderante, como se constata, esta figura… Que, no fundo, apenas foi expulsa
do paraíso por se rebelar contra os ditames de um Deus soberano, implacável no
seu rígido acto de governar.
Sob um bem específico ponto de vista, Lúcifer é,
assim, muito mais humano e consciente do que o próprio Deus, sempre abafado por
um ego que, tal como Ele, parece não ter fim. Só assim se justificam os
sacrifícios exigidos, a sede de sangue inocente, as bajulações requeridas e as
pragas que de pronto são lançadas ao mínimo sinal de desobediência. Mas, uma
vez mais, sublinho: a personagem apenas se baseia na imagem do Deus que a
Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, apresenta. Pois Saramago, no fundo,
nunca coloca em causa a existência de um Deus, seja ele quem for, tenha a forma
que tiver. A sua crítica, mordazmente expressa, dirige-se sempre ao Deus da
religião em causa, à ideia que sobre o divino é apresentada por tais crenças – e
que em tantas ocasiões foi motivo de disputas e de mortes. Ora, é precisamente
contra tais banhos de sangue, tão lamentavelmente comuns ao decorrer dos séculos,
que o autor se insurge. Em entrevista a uma publicação brasileira, dois anos
antes de sua morte, José Saramago revelou o pensamento que suporta essa pessoal
convicção: «(…) no fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a
religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as religiões, por nocivas
à Humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las» (“O Globo”, Outubro de
2009).
Umas das cenas fulcrais da obra surge já na
segunda metade do livro (embora o trabalho não esteja propriamente dividido,
pela narração e pelo volume remanescente poder-se-á concluir tal coisa) e
envolve precisamente essas três personagens: Deus, o Diabo e Jesus. Num barco
em pleno mar da Galileia, envoltos em bruma cerrada, os três conferenciam sobre
o destino do futuro sacrificado e, antes disso, da missão que lhe será exclusivamente
confiada. Aqui se poderá compreender, mesmo em célere análise, o carácter
natural de cada uma das personagens: a humanidade do Diabo, a soberania
empertigada de Deus e o natural receio de Jesus, um simples homem pleno de
dúvidas e feridas em sua alma. Perante o prenúncio da crucificação, e de todas
as mortes que, desde já profetizadas, ainda ocorrerão em nome do catolicismo, o
próprio Diabo, imagine-se, aceita retratar-se e regressar aos céus, se, em
troca, toda a carnificina for poupada. Deus, contudo, rejeita – ciente de que
sem a figura do Diabo, encarnando o suposto Mal, ele próprio, o Divino, o
suposto Bem, não existiria. E Deus, como se constata, é orgulhoso demais para
permitir a sua própria não-existência… Mesmo sendo em benefício da humanidade.
São, assim, ideias bem opostas às do dito “senso
comum religioso”, como facilmente se compreenderá. Mas uma vez mais se
confirma: este livro poderá ser tudo, menos convencional. Desde logo, e creio
que sobeja um resíduo de intrigante curiosidade nessa constatação, a obra
demora-se, ao contrário do habitual, no tempo em que Maria e José são ainda
recém-casados, no nascimento e na infância de Jesus, do que propriamente na
vida adulta desta figura, dos apóstolos, da sua mensagem, dos ensinamentos, dos
milagres e de sua morte – como em tantas ocasiões é realizado. Talvez por essa
via, provavelmente intencional, se entenda que o período a merecer um digno
destaque seja a origem de tudo, e não propriamente as causas de algo
miraculosamente eclodido.
Na realidade da obra, permanecerá sempre implícito
que a penitência de Jesus foi a consequência de um engodo obrado por Deus,
depois de firmar, com sangue derramado, a sua divina aliança. Assim, toda a
messiânica imagem construída em torno de Cristo assume a forma de uma dádiva
divina que cumpre requisitos e intenções obscuras e duvidosas, como se ele, um
mero homem, fosse somente mais um dos borregos que, naquele tempo, como era costume,
ao engano iam para o sacrifício pascal. Essa é a ideia que, no término da obra,
mais perdurará no imaginário do leitor. Além da própria figura de Maria
Madalena, aqui retratada como a fiel e muito amada companheira de Jesus – muito
antes de Dan Brown expor a ideia no seu famoso romance, mas permanecendo na
linha do clássico A Última Tentação de
Cristo, do grego Kazantzakis.
Em suma, o leitor, ao se aventurar pelas “texturas
Saramagas”, permita-se a expressão, que nesta obra encontram-se tão sobejamente
impressas, testemunhará a dessacralização da história mais antiga e famosa do
que qualquer outra, lapidadas que se encontram as divindades nela pressupostas
– ao ponto de se exporem as mais finas fímbrias da efémera humanidade que a
sustém. Esboçando a sua imagem em traços deveras gerais, é isso que se
apresenta no melhor estilo de José Saramago: as frases longamente preenchidas,
reforçadas por ideias em sequência de discurso lógico; parágrafos que quase nos
fazem crer numa eternidade literária; pontuação irregular; diálogos expostos de
forma corrida e, como tal, condensada – sem os habituais sinais ou avisos de
suas precedências ou términos. Tais características são comuns no autor,
confesse-se, mas poderão, por diversas vezes, ao longo de tão longa narrativa
(ultrapassa as quinhentas páginas), confundir ou até mesmo fatigar o esforçado
leitor. Mas o estilo de escrita, declaradamente rebelde, provavelmente inovador
(que se exaltem os adeptos do Classicismo!), é marcadamente pessoal e assumido
a íntimos níveis como a mais fluida das vias. Mas para que os gostos se deleitem
com os aromas das rosas que Saramago soube criar, todos os espinhos das mesmas
terão de ser trilhados e ultrapassados – apenas para que se possa tocar a
maciez de suas pétalas. Só assim é que, translúcida, por fim emergirá a genuína
alma do grandioso autor que as pensou.
Ligações a este post:
Algumas linhas sobre este romance e o primeiro capítulo estão aqui.
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