O encontro histórico entre Dickens e Dostoiévski revelado como um grande embuste literário
Dada a forma como a literatura do século XIX às vezes é
concebida, como uma província repleta de grandes romancistas não é difícil
imaginar um encontro entre Charles Dickens e Dostoiévski. Isso, de fato, não seria
uma ocorrência incomum. Talvez fosse mesmo de rotina, como Jay Z e Kanye
esbarrando-se numa festa qualquer. Quando apareceu a história de que os dois
romancistas se encontraram em 1862, em Londres, quase ninguém chegou a duvidar
que o fato pudesse não ser verdade. Seria bem capaz que, no mesmo lugar Herman
Melville tenha se deparado com Flaubert, mesmo que o autor de Moby Dick não tenha de forma alguma atingido
em vida a fama que adquiriu depois de sua morte e fosse, então, capaz de ser
reconhecido por alguém como o escritor francês. Ou melhor, mesmo que Melville fosse
um desconhecido total se formos olhar para os outros três. Dickens então...
Mas, que eles tenham se lido ou que tenham viajado centenas de quilômetros para
visitas pessoais e a suposição sem caráter segunda não passam de
improbabilidades.
Também a história de Dickens e Dostoiévski está no rol das fabricações
tal como a imagem que ilustra esta matéria, embora tenha sido tida como plausível
o suficiente para se apresentar na leva de acontecimentos da vida do escritor inglês.
Embora os dois homens tivessem sensibilidades diferentes, suas experiências de
vida e os romances a catalogarem determinados males sociais de seu tempo, são dois
detalhes, por exemplo, que é possível de aproximação ou mesmo de atraí-los para
um encontro.
O crítico literário Michiko Kakutani do jornal The New York Times não acreditou tanto
nessa possibilidade e repetiu a história do encontro entre os dois escritores
apresentada por Claire Tomalin na biografia Charles
Dickens, a life (título ainda inédito no Brasil) com suas incongruências.
Tomalim, que descobriu essa história Dickens
Fellowship: o romancista russo intencionalmente teria procurado seu colega inglês
em Londres e, ao encontrá-lo, ouviu de Dickens a confissão de que gostaria de
ser como um de seus personagens, honesto, simples, mas não teria apreço pelos vilões,
construído de suas próprias falhas pessoais.
Pergunta-se Kakutani: Por que Dostoiévski só mencionou o
encontro numa carta escrita 16 anos depois do fato, numa carta que não chegou a
ser vista por nenhum estudioso de sua obra? Qual é a língua que os dois homens
têm em comum, e se eles tinham, provavelmente o francês, seriam fluentes o
suficiente para conversarem tão abertamente? E mesmo tendo Dostoiévski visitado
Londres em 1892, ao que parece ele ter feito isso, ele teria procurado,
intencionalmente, Charles Dickens? Eric Naiman, professor de língua e
literatura eslavas da Universidade de Berkeley duvidou sempre de tudo isso e em
suas pesquisas sobre sempre achou ser uma elaboração ficcional muito bem feita
por A. D. Harvey. Harvey criou para si um círculo de ficções de algumas
identidades tão bem elaboradas, diz Naiman, a ponto de servir de motivo para
que estudiosos (encantados demais e pouco desconfiados como Kakutani) levassem
a tomar como verdade.
Ego ferido, talento perdido, vaidade e ambição frustrada ou
quaisquer outras questões passíveis de suposição foi motivo de elaboração fraudulenta
por Harvery. O encontro entre Dickens e Dostoiévski, portanto, não passaria de
embuste, como recobra as investigações feitas pelo The Guardian e as de Eric Naiman para o suplemento Times Literary. O fato só reforça uma
necessidade: o estudioso tem de ser um cético; deve estar sempre inclinado, e
por boas razões, para não confiar na palavra mesmo daqueles que se colocam como
especialistas e autoridades naquilo que dizem ser.
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