Flores raras, de Bruno Barreto
Por Pedro Fernandes
Não estamos diante de uma obra de arte que quer provocar
rompimentos estéticos – afinal o que é isso mesmo se toda obra de arte não traz
ela própria já esse sentido como prova de que a normalidade nunca lhe pertence?
Mas, é um filme, digo logo, que deve ser visto e paparicado pelo público
brasileiro. Não é isso uma previsão, mas um modo de pedir. Lá fora, sim, suspeito que a produção possa também não ter a repercussão necessária.
A conclusão futurista vem do fato de que este foi um trabalho que teve seus
empecilhos ainda quando o diretor estava no processo de captação de recursos
para sua realização – coisa que não é nova em se tratando de qualquer produto
artístico, mas este tinha um quê que deu balbúrdia: algumas empresas se
recusaram a fornecer patrocínios para não ter o belo e tradicional nome
(empurre o leitor aqui toda carga de ironia que a expressão possa ocupar) a uma
história recebida grosso modo com uma penca de lesbianismo do princípio ao fim
da trama. Perderam todos, que o filme está longe de ser um apanhado de situações homossexuais:
Barreto respondeu sobre essa visão reduzida com um filme que, em linhas gerais,
é uma das produções nacionais mais bem acabadas dos últimos anos.
Evidente que ele é beneficiado com duas biografias muito
intensas e um contexto histórico social da mesma natureza: a vida da arquiteta
Carlota de Macedo Soares, a Lota, a vida da poeta estadunidense (e uma das maiores
da literatura) Elizabeth Bishop e o período em que Brasil atravessa o retrocesso
do golpe militar de 1964. Lota é a mentora do parque do Flamengo, no Rio de
Janeiro; além desse grande feito ao qual deu todo seu empenho e vida para vê-lo
realizado, envolveu-se numa paixão racional por Bishop, por quem terá vivido
desde que a poeta, meio isolada e desiludida da carreira nos Estados Unidos,
veio para o Brasil. Racional porque Lota – num ímpeto centrífugo de ter para si
tudo e todos – não dispensou a mulher com quem já vivia junta há um par de
tempo, Mary, também estadunidense, e abrigou seu segundo amor, Bishop, sob o
mesmo teto fornecendo a elas todas as possibilidades de serem mulheres
realizadas: a Mary, dá-lhe o sonho de ser mãe quando compra de uma família da
periferia uma filha; a Elizabeth, projeta um escritório dentro dos terrenos de
sua casa onde a poeta veio a redigir o seu famoso livro Norte e Sul, pelo qual recebeu o Pulitzer de 1956.
Mas, se o ímpeto de Lota é ter tudo para si, este filme –
calcado no poema de Bishop “A arte de perder” – é um filme sobre perdas. O
racionalismo de Lota leva-lhe ao suicídio, em parte porque perdera parte das
grandes realizações. Quando os militares sobem ao poder, apesar do seu apoio a
eles, é por eles jogada ao esquecimento e seu parque transformado num lugar símbolo
da pujança militarista. E é por esse apoio extremado – fundado em grande parte
no próprio desejo de ter para si todas as realizações profissionais – que ela
própria cava as valas que vão distanciando a proximidade com Bishop que desacreditada nos encantos, primeiro do Rio de Janeiro, vai para Ouro Preto, depois do Brasil, e toma o navio de volta aos Estados
Unidos onde assume uma cadeira na Universidade de Nova York; o que era para ser um
semestre, foi o retorno para o resto de sua vida já que mais outros convites vieram, Washington, Harvard, Massachusetts...
Nesse cenário de movências a própria Bishop terá de fazer suas concessões: no início de tudo largar o país de origem por um país que é todo exuberância e tão exuberante que é sufoco à natureza reservada e tímida da poeta. No caso de Lota, o seu ímpeto é todo uma força de dominação dessa exuberância: se isso, como a natureza tropical terá causado estranhamento a poeta, também terá despertado nela um misto de fascínio e desejo por essa capacidade de domínio. Depois, do Rio de
Janeiro, e de Ouro Preto, já tão-quase adaptada a esse exuberância natural é chegada a vez
do retorno; e agora é outra a perda, em que a princípio pareceu-lhe ser um lugar em que pode sentir-se em casa, e a de um amor.
Esses lugares de perdas e a força que unem as três mulheres são
as raridades a que esse filme talvez mais se refira. Os acontecimentos aí são muito
bem construídos e a narrativa em torno deles bastante coesa. Não há espaços para
deslizes ou subterfúgios; as causas e as consequências, os encontros e os
embates estão sistematicamente interligados, tudo a compor um sistema muito bem acabado;
Barreto explora com destreza isso a ponto de desenvolver a complexidade exigida
biograficamente da psicologia das duas personagens. Por falar em personagens,
tanto Glória Pires quanto Miranda Otto estão impecavelmente bem nos papeis,
escolhidos, a meu ver, com uma sensibilidade rara para o cinema nacional.
É necessário dizer ainda três outras questões mais técnicas
sobre Flores raras: a fotografia, o
figurino e a trilha sonora. Essa justeza no plano das situações também se
verifica na escolha e combinação dos tons; é nesse mesmo contexto que, por
exemplo, o vestuário tem uma participação importante, denotando leveza quando o
tom da cena é leveza, ou dureza, quando o tom é de dureza. Ainda em se tratando
da fotografia, é necessário pensar na criação dos cenários – os planos abertos
da cidade do Rio de Janeiro das décadas passadas e também da Ouro Preto da época foram realizados bem construídas
e em nenhum momento dá-se que aquilo ali está num plano artificial, coisa que
em muitas situações do tipo, é um erro comum. A trilha sonora também obedece essa
justeza padrão do filme. Entre o samba da Lapa, a bossa nova de Tom Jobim e
leves pitadas de jazz, tudo aí contribui para uma a formação de um organismo cinematográfico
impecável.
Terá seus deslizes no processo de reconstrução da história
nacional, como bem lembra o crítico José Geraldo Couto, sobre duas situações em
específico, situações essas que tenho minhas ressalvas: uma, é que o Carlos
Lacerda não teria sido o doce humanista tal como foi interpretado por Marcello
Airoldi, mas sim, um ambicioso sujeito que contribuiu com o Golpe Militar a
título de seu autofavorecimento político; outra, a omissão do nome do arquiteto
paulistano Roberto Burle Marx, o autor do paisagismo do Parque do Flamengo, não
mencionado uma única vez no filme.
Uma resposta para essas minúcias históricas desfeitas talvez
possa ser dada se formos ler qual o prisma da narrativa: no caso do Carlos
Lacerda do filme, não tenho essa visão romântica de Geraldo Couto. A fala da
personagem quando se refere ao interesse de se eleger governador do Rio de
Janeiro, demonstra claramente não estarmos diante de um sujeito com aspirações simplistas.
Pode ser que o cineasta não tenha querido entrar em detalhes sobre a psicologia
da personagem uma vez que os papéis centrais da narrativa eram os de Lota e
Bishop. Essa justificativa, aliás, resolve também o segundo lapso histórico.
Pareceu-me que o interesse de Barreto estava em se evidenciar a importância que
o poder de dominação da arquiteta Lota tinha sobre as situações, sobretudo,
sobre a natureza bruta e o conservadorismo social – tanto que o filme não se dedica em esmiuçar o
processo de construção do parque, mas atenta para detalhes mínimos que têm
relação com essas duas situações de dominação e que tinham relação muito
própria com a situação romanceada.
O fato que este é um filme que, pelos atributos
elencados ao longo dessas breves notas, está entre os daquela lista dos que merecem
de ser visto: a riqueza visual e a forma com que a narrativa foi construída, são,
portanto, dois elementos suficientes para dizer que este é um filme muito bem
feito. Ah, e vale dizer, que esta é uma produção que tem algo mais em comum com a literatura que a presença de Elizabeth Bishop como das figuras principais; ele produto de uma leitura do livro de Carmem L. de Oliveira, editado recentemente pela Editora Rocco, Flores raras e banalíssimas, obra que acompanha o amor dessas duas mulheres. É certamente também uma pedida a sua leitura.
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