Elena, de Petra Costa
Por Pedro Fernandes
Primeiro que tudo é necessário dizer que este é um filme
construído no limiar – entre o ficcional e o documental, entre a prosa e a
poesia. Para dizer a verdade, essas linhas são integralmente desfeitas. O tom
subjetivo é mais forte que tudo e destrói qualquer possibilidade da
objetividade buscada seja pela ficção, seja pelo documentário. Tudo, talvez,
finde em poesia e seja este uma poesia filmada. Um alerta, entretanto, deve ser
feito logo à entrada destas notas: não é um filme recomendado para insensíveis,
também não é um filme para os muito sensíveis. Há que está, sobretudo, de bem
com a vida para encará-lo ou sabe-se lá o que depois pode se passar com sua
consciência já turva sobre a vida. É um filme, então, para não desavisados.
A cineasta Petra Costa perscruta entre vozes diversas, entre
fotografias, vídeos, cassetes, diários, breves lembranças e laudos um retrato da irmã, uma jovem
com 20 anos de idade, inclinada para o teatro e as artes da interpretação desde
cedo que parte para os Estados Unidos levando na bagagem o sonho de ser atriz
de cinema. O sonho não sairá do papel. Será vencido pela desilusão. Será tomado
pelo negro da morte, esse ser de asas negras que cobre o filme de uma ponta a
outra como elemento maior desencadeador da dor da perda.
Integralmente narrado – ora interceptado pelo depoimento da
própria mãe, ora por outros depoimentos de pouquíssimos amigos de Elena – Elena é um filme de descobertas. Quando
a atriz partiu para Nova York tinha feito pequenas participações no teatro em
São Paulo e saíra do Brasil frustrada com a dificuldade de romper os
círculos dos fechados grupos artísticos e ser reconhecida pelo seu trabalho. Essa ida era, por oposição, um
voto de esperança de quem tem a certeza (certamente cega) de que tem a
capacidade adequada para está onde muitos outros já estão. Cega, mas não
ingênua. Todo artista de verdade tem um aguçado senso de autocriticidade,
elemento ressaltado integralmente como um dos principais que a memória de Petra
consegue alcançar. Ela tinha apenas sete anos quando a irmã viajou.
Não foram apenas as decepções acumuladas, uma após a outra,
o que levaram o agudamento da depressão e dos distúrbios psiquiátricos que
desencadearam no suicídio da atriz; foi a impossibilidade de suportar os
limites que de alguma maneira estão designados para cada um nós. A história das
artes está cheia de exemplos do tipo: uns mais reconhecidos que outros, mas
todos vitimados pela mesma forma de viver num mundo que não os suporta. Há um
instante epifânico ou transcendental (escolham qual dos dois termos é mais
ajustado para situações do gênero) que só se deixa coroar pela morte – e aqui,
é impossível deixar de pensar em Cisne
negro, de Darren Aronofsky, cujo instante
artístico supera o artista e conduz para uma queda trágica.
Elena rompe com a
linearidade do documentário. Não é uma sequência de acontecimentos que se
sucedem um após outro até chegar a um limite em que se possa ter uma imagem do
retratado. O filme é feito de altos e baixos como se fosse possível expor pela
matéria visual a descontinuidade do tempo da memória. Também as vozes que se
propõe recompor a imagem da atriz não são superposições lineares, mas
justaposições recortadas (no típico recorte documental) como se fossem tomadas
em direto do fluxo de consciência dos narradores e ganhasse forma nos arquivos perscrutados pela documentarista. Nesse processo, a mãe e
Petra, as duas personagens mais constantes no filme, ocupam por vezes diversas
a cena numa reconstrução encenada da memória narrada.
Por fim, Elena alcança
um reconhecimento que é duplo: além de conseguir transformar a dor e a memória
em arte, alcança também o limite não alcançado em vida pela atriz. Se há vida
do lado lá, é possível que ela própria tenha permanecido persistindo pela arte
e Petra, a mais próxima dela, alcançou essa voz do além, e Elena é também uma resposta a ela. Como se dissesse "sua memória não está de um todo morta, ela precisa ser vista, e vista para reconhecimento de seu esforço, do seu desejo, dos seus sonhos; que sonhar é, muitas vezes, perigoso, mas não se deve levar pela desilusão. Eu que sou sua alma na terra fui por sobre seus passos, entre a vida e as garras da morte para mostrar que, sim, os sonhos, o desejo e o esforço podem servir de alguma coisa".
É a conversão da perda em
elemento sublime e positivo. É também um recado de lá para a própria Petra,
tantas vezes desiludida com a arte e tantas vezes tomada pela mesma nuvem negra
da morte que levou sua irmã. A prova são alguns dos prêmios que o filme tem
conquistado e ainda os elogios pela crítica, por onde tem passado. Definido por Walter Salles como uma das experiências mais agudas
que o cineasta já viveu no cinema e “um filme que provoca 60 insights por minuto”, por Fernando Meirelles. E desse
simples lugar, dizemos que este é uma das experiências mais ricas do cinema
brasileiro contemporâneo, sempre tão preso a produções sem açúcar e clichês que tem sua distribuição ampliada nos circuitos nacionais.
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