Crônica de um leitor de "O jogo da amarelinha" (4)

Por Juan Cruz Ruíz



Há um livro fundamental para seguir o que foi o boom da literatura latino-americana enquanto estava explodindo esse momento peculiar em que o entusiasmo da ficção se agarrava à mão. É La llegada de los bárbaros. La recepción de la literatura hispanoamericana en España (1960-1981) (A chegada dos bárbaros. A recepção da literatura hispano-americana na Espanha (1960-1981) tradução livre e ainda inédita no Brasil) cujos editores foram Joaquín Marco e Jordi Gracia. O livro foi publicado pela Edhasa em 2004 e é desde então uma joia de consulta obrigatória.

Em La llegada de los bárbaros, que já é uma edição esgotada, o que pede uma reedição obrigatória ou mesmo uma versão mais reduzida (a versão original tem 1181 páginas), se refere aquele movimento de recepção que não foi sempre admirada, mas que em todo caso refletiu o fervor com que o boom foi comentado nos círculos e periódicos culturais espanhóis no intervalo de mais de vinte anos. Essa recepção deu passo, precisamente a partir de princípios dos anos 1980, a uma sintonia mais descrente, menos fervorosa, até que ao princípio dos anos 1990 se produziu um esfriamento que afetou alguns autores. Entre eles, Julio Cortázar.

Mas naquele momento, em meados dos anos 1960, como coletam Marco e Gracia em sua extraordinária antologia, Cortázar estava no centro do assombro.

Um crítico literário que foi e é fundamental para entender a relação de Espanha com a literatura ibero-americana e estrangeira, Rafael Conte, deu em seu periódico, Informaciones, cujo suplemento literário dirigia então antes de ser o corresponsável desse periódico em Paris, noticia com muita atenção esse assombro pessoal ante O jogo da amarelinha.

Como usou fazer Rafael Conte, embora escrevesse em periódicos nos quais o espaço não resulta-se infinito, se entreteve em situar Cortázar antes de ressaltar a importância do romance que tanto lhe havia chamado a atenção. A revista Índice de Juan Fernández Figueroa havia feito um amplo dossiê sobre a figura de Julio Cortázar, com textos do imprescindível Luis Harss, de Francisco Fernández-Santos e de José-Miguel Ullán, e com fotografias de Antonio Gálvez, que era então em Paris o que agora é, e muito, Daniel Mordzinski. Assim que a gente já o sabia: Cortázar era alguém muito especial, e Conte queria situá-lo. Era o 2 de setembro de 1967; O jogo da amarelinha havia sido publicado pela Sudamericana em 28 de junho de 1963; as coisas, vê-se, aconteciam lentamente. E se lia mais letamente; alguns dizem que melhor.

Para começar Conte colocou Cortázar ao lado de Borges. Relativamente. “Costuma dizer-se”, comentava Rafael, “que Cortázar nasce de Borges. Esta é uma verdade relativa. Indubitavelmente, Cortázar é um escritor argentino, melhor todavia ibero-americano, e também é certo que a literatura intelectual surgiu no dito continente da mão sapiente e esplêndida de Jorge Luis Borges. Borges sofreu uma evidente influência angloxassônica.”

Mas Cortázar... Diz Conte: “Cortázar, nascido de sua linha, há sofrido outra velha influência europeia: a francesa.” E essa é a raiz de O jogo da amarelinha, o binômio dele que desfruta não é apenas o que marca a procedência argentina do autor e sua paixão pela literatura se não a querência de Cortázar por autores de fantasias tão disparatadas como Poe, os patafísicos, Jarry, Cocteau ou Apollinaire, tudo isso amalgamado com paixão acaso extraliterárias (ou nem tanto), como o cinema ou Charlie Parker. Um argentino em Paris, duas das caixas confundidas da rayuela.

Essas combinações aleatórias dariam de si, disse Conte, o assombro de O jogo da amarelinha, que Cortázar pensava (e dizia) era dois livros. Essa broma metafísica do autor levou ao um universo inteiro de leitores a buscar as distintas maneiras de ler o livro, quando na realidade havia que ter seguido seu próprio ensinamento (ditada num conto célebre) sobre a melhor maneira de viajar: ir a pé, como sempre se tem ido; é dizer, ler e ler, e ler sem outra ordem que a que dita no sentido comum.

“Efetivamente”, concedia então o crítico, “O jogo da amarelinha pode ler-se normalmente, começando da primeira página e terminando nas trezentas e tantas das quase seiscentas que tem o livro. A outra maneira de lê-lo é seguir uma ordem, aparentemente arbitrária, indicado pelo autor no início, segundo um numero que leva cada capítulo fragmentado, ou até umas poucas linhas numeradas e que adicionadas como apêndices explicativos – culturais, religiosos, informativos, documentais, diálogos sem conexão, citações, peças de periódicos, refrães, poemas, etc –, constituem o resto do livro.”

O jogo da amarelinha representa o melhor de Cortázar; Conte crê, e diz então, que o escritor tem posto em seu livro, “toda a gama de inovações técnicas da literatura contemporânea”. E o faz em nome de uma atitude literária: “a agressão a realidade”, segundo o crítico. “Cortázar agride a realidade, a deforma e a maneja, sem para isso falseá-la, se não a explicando com uma ironia negra, perfeitamente agressiva, e sempre cruelmente lúcida.”

Conte nos coloca diante de muitos modos da leitura do livro do escritor argentino. Foi esta nota, de fato, que fez com que aqueles leitores juvenis fossem às livrarias. Queríamos saber o que era O jogo da amarelinha de que falava Rafael Conte. E saímos com o livro e já não saímos dessa rayuela. Como disse agora Harss, nos fizemos rayuelitas. Até hoje.

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