Causos morbidamente contados
Por Rafael Kafka
O
último fim de semana foi de uma realização pessoal para mim. Depois de passar
quase três semanas do mês de julho em casa, consegui ir com dois amigos, Klyvia
e Lenilson, à ilha de Cotijuba. Por aí vejo o nível da conquista pessoal, pois
fui com apenas dois amigos à praia e há em mim uma dependência maldita,
confesso, de multidões para me divertir. Isso soa muito paradoxal se levarmos
em conta que adoro ficar sozinho, com um livro e um copo de café ou cerveja,
tendo um aparelho de MP4 embalando a atmosfera com música. Comigo é assim:
solidão absoluta ou multidão barulhenta.
A viagem foi de dois dias, muito
produtiva. Tomamos um goro e batemos papo até altas horas. Tomamos muito banho
e pegamos sol demais. Contudo não quero escrever um relato de viagem. Mesmo a
ida ao cutelo (apelido popular de Cotijuba) tendo me dado a ideia de pelo menos
três textos (esse, uma crônica a mais e um conto realista mágico, ou antes uma
tentativa) o fato agora não é tanto os dois dias de passeio em si, mas um fato
visto logo quando chegamos à praia do Vai-Quem-Quer, onde sempre ficamos em
nossas voltas pela ilha que fica bem próximo a Belém.
O fato em si se refere ao modo
incrível como a sociedade do espetáculo está imersa em nós. Hoje o espetáculo é
o que conta. Fazer parte dele, criar o cenário para ele, ser o protagonista
dele: não importa. O espetáculo tem que haver. Na era dos telefones com câmeras
digitais e das redes sociais que convidam os seres humanos a explorarem ainda
mais o seu gosto e a sua necessidade por exibicionismo, as pessoas sentem um
vício muito grande de aparecer, de serem notadas. Nem que para isso elas sejam
figurantes ou coadjuvantes de espetáculos alheios.
Tal tema é bem batido em nossa
era. Tão batido que muitas pessoas não percebem a relação existente entre o
excesso de fotos de momentos triviais, de status e tweets falando sobre idas ao
banheiro ou passeio pelo shopping com os melhores amigos, com a cada vez maior
valorização da tragédia alheia, a qual vemos em cenas como a que narrarei em
minha crônica.
*
Imaginem a cena que rola todos
os dias em jornais sensacionalistas de cunho policial: alguém morreu, foi
ferido, assaltado, etc. Ao redor, temos as equipes de jornalismo, de polícia e
de perícia fazendo o seu trabalho. Ao redor dessas, temos a equipe de anônimos
que espera ver o fato com detalhes para depois comentar, em uma mesa de bar ou
na prosa da espera da fila do SUS ou do ônibus sobre o mais recente caso de
polícia. O curioso é o modo como os fatos são narrados, em uma frieza de
fofoca, de causo.
-Tu viste o novo bafafá? O
fulano foi morto com uma facada bem no meio do peito.
-Nossa! Onde isso?
-Ah, perto da casa dele. Dizem
que era metido com tráfico e assaltos. Devia muito, com certeza.
-Sim. Devia mesmo. Uma pena. Mas
tu viste aquela caso que rolou no bairro...?
E assim a conversa segue. Como
se fosse um caso qualquer, um fato o qual não poderá afetar nenhum dos
interlocutores. Lembro-me nesse momento de minha mãe chegando de suas andanças
pela cidade. Bombonzeira há muitos anos, mesmo agora quando nossa família vive
uma fase bem segura no sentido financeiro, ela se mostra uma pessoa amante de
atividade e sai pela cidade vendendo bombons em festa de cunho popular, regadas
a arrocha, tecnomelody e outros estilos. Sempre que ela chega dessas festas,
narra algum causo mórbido.
-Fulano levou uma surra de um
bando de malandros.
Ou ainda:
-Aquela garota que namorava com
dois caras, sabe? Ela foi descoberta. Nossa, rolou um porradal lá na festa.
Ou ainda:
-Aquele menino que jogava bola
com vocês levou duas balas na cabeça. Uma pena. Era uma pessoa querida demais
pela mãe.
Os meus três irmãos são
apaixonados por esses causos. As suas conversas giram ao redor disso e fico
chocado com a minúcia de seus detalhes que deixariam um Nelson Rodrigues
embasbacado. A morte hoje é o espetáculo chocante mais comum e as pessoas falam
dele com paixão: gostam de ser notadas com seu discurso jornalístico repleto de
veracidade, minúcia, paixão. Querem ser reconhecidas como as pessoas que
dominam as informações, as pessoas sempre “por dentro” dos fatos.
*
Saímos da cidade para relaxar,
para espairecer, sair um pouco do contexto virulentamente barulhento e caótico
no qual vivemos. Ainda temos a ilusão da praia como um local mais calmo, mas
leve, sem todas aquelas loucuras que vemos em uma cidade grande. Mas a cada dia
mais a barbaria urbana se mostra mais presente nas praias, no campo, enfim.
Antigamente a praia do
Vai-Quem-Quer era, segundo me dizem, um local paradisíaco e pacato. Hoje é só
paradisíaco. Tornou-se uma praia cheia, repleta de pessoas, música. Isso é bom,
confesso. Gosto de praias cheias. Contudo é mais fácil a ocorrência de certas
cenas bem bizarras, típica de ambientes com grande aglomeração de pessoas e
seus olhos curiosos. E se eu gosto de realismo mágico é porque somente esse
gênero literário é capaz de expor concretamente a sensação de horror que me
aflige quando deparo-me com cenas bem absurdas...
A cena que venho protelando
desde o começo da crônica ocorreu logo quando chegamos à praia, após a
travessia de Icoaraci para a ilha de Cotijuba e mais uma viagem desconfortável
em um trator/charrete para a praia longínqua que por isso mesmo recebe o
singelo nome, pois de tão distante só vai lá quem quer realmente se divertir. E
andar.
Após a chegada, começamos a
arrumar nossa barraca, a qual serviu mais como depósito de nossas coisas. Nesse
momento, vimos uma multidão de umas 50 pessoas rodeando uma dupla de bombeiros
civis. Percebemos, mesmo de longe, um corpo masculino desacordado. Olhamos ao
redor e vimos, com nosso choque aumentando, uma multidão aproximando-se e de
repente aquele grupo praticamente quadruplicou de tamanho!
Ficaram ali por cerca de dez
minutos. Surgiram os celulares filmando a cena, algumas pessoas atrasadas
querendo não perderem a cena. De repente, os bombeiros tiveram a ideia de
correrem para um local mais reservado com o acidentado que devia ter bebido
demais e acabou se afogando nas águas revoltas de nossa Baía do Guajará. E
nosso choque que pensava não poder mais crescer cresceu quando vimos aquele mar
de gente correndo atrás dos bombeiros, com suas câmeras portáteis, atropelando
barracas, pessoas que não queriam seguir o espetáculo, alguns indivíduos até
mesmo se pondo a frente dos bombeiros tentando adivinhar os seus próximos
passos para não perderem o desfecho do fato.
Klyvia, Lenilson e eu
observávamos aquilo mudos, vez por outra falando em um tom indignado, mas muito
mais surpreso. Pela primeira vez em minha vida eu vi como a vida do outro é
indiferente. Como o que importa mesmo é fazer parte do espetáculo, ver as
informações, registrá-las e depois passá-las adiante... Tudo seco, sem conteúdo
pensante, sem pensamento racional.
Tudo é tão batido: o
exibicionismo voltado para coisas tolas, para coisas triviais. Mas nunca será
batido quando sairmos do campo verbal. Nós ainda seremos surpreendidos demais
com o fato de que as pessoas querem mesmo é ver, saber, para depois falarem que
sabem e os ouvintes, como leitores sensacionalistas sedentos de sangue e
curiosidade, ficarem felizes, deliciados com a prosa, mesmo que o seu tema leve
por consequência à morte de alguém.
Não sei se o rapaz desacordado
morreu. O que sei é que a multidão voltou à sua diversão cotidiana aos fins de
semana de férias, desanimada pois a diversão, a emoção, terminara. Era visível
os olhos deprimidos, tristes por não terem visto o desfecho da cena: a morte ou
a redenção do herói desacordado. Ou será que eles estavam tristes pois a cena
acabara quando ela nunca deveria acabar? Quando aquela emoção toda do fato
visto e do fato a ser narrado deveria ser eterna?
O bom é que depois eu sei que
haverá a possibilidade de se narrar que em um fim de tarde quente, apesar de
levemente nublado, um cara quase morreu na praia e foi salvo pelos bombeiros,
enquanto uma imensa multidão se reunia ao seu redor para ver o que ocorreria,
torcendo para a vida ser salva, mas querendo mesmo a emoção de fazer parte de
um espetáculo.
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