As armas secretas, de Julio Cortázar
As armas secretas é uma compilação de cinco contos escritos por Julio Cortázar e
traduzidos por Eric Nepomuceno, que também traduziu Cem anos de solidão de
Gabriel García Márquez para a editora Record. A edição lida por mim para
feitura dessa resenha foi produzida pela Civilização Brasileira.
Os cinco
contos contidos no livro são de um primor estético e literário muito altos.
Porém chega a ser redundante usar tais termos para se falar de obras produzidas
por Cortázar. A não ser, é claro, que o leitor não goste de histórias
mirabolantes e repletas de surpresas típicas da linguagem do realismo mágico, o
que o fará não ver primor nenhum nas obras do escritor argentino, porque é isso o
que vemos nos contos e romances de Cortázar: as histórias começam em um ritmo
de prosa e falam de assuntos (perdoem o trocadilho) prosaicos, comuns, banais.
Aos poucos,
contudo, as surpresas aparecem e o que começou como um causo simples ganha
contornos angustiantes e, em certos momentos, horripilantes. O vocabulário de
Cortázar não é difícil como o de um James Joyce, mas a linguagem se desfaz
diante de nós, revelando uma realidade opaca, complexa e ambígua.
Muitas
vezes terminamos de ler um conto do escritor argentino e não sabemos dizer se o
que concluímos está certo ou errado do ponto de vista interpretativo. Ouso
dizer, assim como críticos mais experientes e gabaritados, que Cortázar
brincava com a capacidade assaz subjetiva do ser humano de interpretar as
coisas conforme o seu olhar. Sabendo da supremacia da visão pessoal do leitor
sobre a voz do autor, o autor de O Livro de Manuel criou histórias de final
ambíguo mostrando que o ponto de vista humano é o definidor de sentidos em nossa realidade.
Nesse
sentido, sabendo que cada leitor faria uma interpretação de suas obras,
Cortázar criou obras que conseguem mexer com nosso âmago, deixando-nos
angustiados em nosso costume por obras de sentido completo, ou antes, aparentemente completo. Ele escrevia como quem brincava, eu sempre digo: poucos
autores têm um domínio tão grande da linguagem e não é à toa o fato de seu principal
livro O jogo da amarelinha levar o nome de uma brincadeira.
Mas falando
de As armas secretas, encontramos nos contos os bons e velhos
elementos da prosa cortazariana presentes. A
ambientação geralmente se passa em locais urbanos, alternando entre Paris e
Buenos Aires quase sempre. (O que pode ser considerado um elemento
autobiográfico importante na análise, já que Cortázar nasceu na capital
argentina, vindo a se radicar na França até o fim da vida.) Além disso, vemos
personagens comuns, repletos de uma vida em si simples, porém, como qualquer
ser humano, cheios de dramas pessoais, desejos e questionamentos existenciais.
Um breve
parêntese meu: o grande charme do realismo mágico, em especial em autores como o aqui abordado
e José Saramago, para citar outro nome que se beneficia dessa estética, é a predileção por protagonistas como pessoas simples, sem a
capa de sofisticação da fama. A maioria dos personagens desses dois autores são
homens do povo, pessoas como nós, leitores, os quais muitas vezes nos
identificamos com a situação absurda vivida por eles e pensamos em nossos
próprios conflitos.
Esse efeito
de usar seres banais como protagonistas de histórias, torna cada conto uma
surpresa em si mesmo. Assim como Machado de Assis, Cortázar possui uma
imaginação imensa para abordar e criar o mais variado panteão de situações.
Claro, que diferentemente do mestre do realismo brasileiro, o argentino usa uma
linguagem mais simples, porém com recursos narrativos próprios, o que o
tornam um franco experimentalista das narrativas.
Falando do
contos de As armas secretas é difícil tecer uma análise tão simplória quanto
essa que faço sem a certeza de que estou a deixar de lado uma série de
elementos narrativos, estéticos e temas políticos, filosóficos e outros mais os quais
por si só dariam páginas e mais páginas de análise acadêmica a respeito.
“Cartas de Mamãe” é por si só é um dos contos mais surpreendentes do
livro. E um dos mais curiosos já lidos por mim. Nele, percebemos a presença
bizarra de um triângulo amoroso que nem existe mais, a não ser na lembrança de
um irmão morto por tuberculose dois anos antes e no silêncio insistente da
esposa do irmão vivo, que antes tinha um caso amoroso com o morto que agora é
citado, como vivo, em uma carta da mãe. Na carta, a mãe de Luis (o irmão vivo)
diz que Nico (o irmão morto) pretende ir a Paris fazer uma visita a ele e à
esposa, Laura.
No começo,
Luis estranha o comportamento de Laura, impassível perante a menção do nome do
ex-amor esse tempo todo. Com o passar do tempo, contudo, a presença do irmão
morto nas cartas da mãe torna-se mais insistente e o que a princípio parece
ser um delírio da mãe causado pela idade, começa a se tornar uma dúvida cruel:
o irmão realmente está morto? Infelizmente não posso colocar aqui a minha
conclusão do conto, mas posso dizer que esse clima de ambiguidade (a morte ou
não do irmão) persiste após a finalização do conto, o que o torna ainda mais
bem escrito do que sua narrativa bela, dinâmica e veloz, mesmo falando de fatos
comuns, como diálogos entre um casal que começa a ter uma crise por se
questionar as raízes de sua felicidade e o quanto elas estão interligadas ao
sofrimento de outro ser.
O segundo
conto é “Os Bons Serviços”. Nele temos uma senhora que é convidada uma noite
para vigiar um grupo de cães em uma festa de pessoas de classe alta. Após a
festa, a já idosa madame acaba conversando com um dos convidados que é
simpático demais com ela e até a acompanha em um momento de bebedeira, o qual
termina de modo bem constrangedor quando os donos da casa pedem educadamente à
senhora que se retire, porém com um ar bastante recriminador.
Algum tempo
depois, o chefe da família rica que a contratou para fazer a vigilância dos
cães na festa procura-a novamente, mas dessa vez para ela fazer as vezes da mãe
de um importante homem que faleceu dias antes. No momento do enterro, a senhora
descobre que o morto é nada mais nada menos do que o seu companheiro de farra,
pelo qual ela passara a sentir grande afeição. O que deveria ser choro encenado torna-se choro sincero.
Percebemos no conto uma espécie de brincadeira
com a preocupação exorbitante da classe burguesa com as aparências, a qual
chega a níveis de paroxismo tão extremos quanto a criação de uma verdadeira
peça teatral em um momento fúnebre.
O terceiro
conto é “As Babas do Diabo”. Bem, não há muito o que dizer desse conto, pois a
todo instante todos dizem algo dele. O que posso dizer no momento é que é o meu
conto favorito do livro, apesar de preferir, na obra de Cortázar, outros contos
como “A autoestrada do sul” e “Lugar Chamado Kindberg”. Ainda assim, a
construção dessa história curta cria um certo dilema existencial e até
metalinguístico quando falamos em arte.
Um rapaz,
Michel, que trabalha com fotografia, está em um parque quando observa um
garoto e uma moça mais velha conversando. Cortázar usa um recurso
muito dominado por ele e cria um efeito que chamo de “dizer sem dizer
algo”: percebemos com pistas ditas pelo narrador (sabemos o que ocorrerá na
sequência) a essência do sentimento que permeia a cena. No caso, a primeira
experiência sexual do garoto com uma mulher mais velha, que provavelmente
está a ser paga por aquilo.
O fotógrafo
foca a sua câmera despretensiosamente e poucos dias depois, rememora a cena e
começa a perceber detalhes nela não vistos antes, em especial relacionados à
presença de um homem que fica à espreita de tudo até o momento em que o garoto
foge (quando Michel dá o clic da câmera). Michel então, por meio das
reproduções feitas da cena em fotografia, começa a imaginar a cena de um crime.
Mas qual crime seria esse?
Relendo o
texto, ficamos perto muitas vezes de responder a pergunta, contudo mais uma vez
a imprecisão é a marca característica de tudo. O crime imaginado por mim, pode
ser diferente para outro leitor. Ou melhor, provavelmente será.
Li o conto
muito tempo depois de ver Blow Up de Antonioni, inspirado em “As Babas do
Diabo” . (Por sinal, vale ressaltar que após ver o filme, dirigi-me a uma
biblioteca em busca do romance O Livro de Manuel, o qual considero meu livro
favorito.) O filme já me causara uma impressão ainda mais forte após a leitura
do conto: a de que o olhar humano não apenas entende a realidade, mas a recria.
E ao menos
em minhas leituras de Cortázar pude perceber em alguns pontos essa
metalinguagem com o olhar, com a interpretação das coisas pelo ser humano. Dentro
do quarto conto, “O Perseguidor”, achei que tal questão chega a níveis de
significação muito amplos.
Tal conto,
considerado ao lado “As Babas do Diabo” o melhor de Cortázar por muitos, vemos
uma relação de amizade bem interessante entre um saxofonista considerado uma
lenda no jazz, Johnny, e seu amigo crítico de música, Bruno, que por sinal
escreve uma obra biográfica sobre o amigo jazzista.
Johnny é um
homem perturbado, repleto de delírios, vícios, problemas de composição. Podemos
associá-lo ao mito do gênio incompreendido, como tantos do naipe de Kurt Cobain
e Amy Winehouse. Bruno é o típico jornalista que vive de falar da arte feita
por outros. A relação entre os dois começa bem harmoniosa, com Bruno dando todo
o apoio que pode a Johnny e expondo em uma espécie de monólogo as coisas que vê
em Johnny e as impressões que tem disso.
A relação
dos dois começa a sofrer choques quando debatem-se a visão do amigo com a visão
do crítico literário. Aos poucos, Bruno percebe que Johnny reage demais negativamente
àquilo que foi dito sobre no livro feito. No final do conto, percebemos uma
crítica muito interessante ao labor do crítico de arte em geral, o qual é mais
um leitor que expõe sua visão sobre o objeto lido, contudo tendo um prestígio e
um direito de voz que os demais leitores anônimos não têm. É um conto longo e cheio de improvisação. e de jogos de espelho ontológicos.
O último
conto é o que dá título ao livro. Nele, vemos um casal passando por
um problema que seria usado em outra personagem de Os Prêmios: uma mulher com
problemas sexuais que não consegue se sentir excitada a ponto de se entregar ao
namorado. Mesmo em uma temporada de dez dias juntos o problema parece não sumir
e aos poucos fatos do passado são jogados de forma turva em cena.
O conto
começa de forma harmoniosa, mas aos poucos um certo terror psicológico é
instaurado e mais uma vez o final é impreciso e deixa para o leitor a tarefa de
definir como tudo termina em seu universo de inferências. Vemos nele de forma
bastante sutil os fantasmas do passado marcando de forma bastante firme o
presente da mulher, a qual não consegue se despir de seus medos e sentir prazer
no sexo, despertando, por conseguinte, os fantasmas atuais do amante.
As armas secretas é mais um dos muitos livros de Cortázar em que ele convida o leitor a
participar ativamente da história, colocando os pontos que faltam nas lacunas
apresentadas no decorrer do texto. É um livro que pode até não exigir muito
tempo de leitura para os leitores mais apressados, mas deve ser lido com
atenção e preparo, pois como qualquer obra de Cortázar tem o poder de relançar
um novo olhar sobre a vida, mostrando tal fenômeno como um fato aberto e sem
explicação fechada. O que para leitores como eu a torna ainda mais digna de ser
vivida.
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Alfredo Monte