Uma dama em Paris, de Imar Raag
Parte da crítica terá se esforçado para uma recepção ao
menos fria sobre esse último trabalho de Ilmar Raag. Mas, peço licença para ir
em direção contrária e ensaiar outro esforço, o de uma recepção calorosa ao
filme. Uma dama em Paris é o terceiro
longa do diretor que já dirigiu e escreveu para a televisão August 1991, sobre a tentativa de repressão
da independência estoniana pelos russos e Klass,
sobre um estudante em defesa de seu colega vítima de bullying numa sala de aula. E nesse contexto, o filme é o mais
diferenciado já produzido por ele. Produzido numa parceria larga, aliás, entre Estônia,
seu país de origem, Paris e Bélgica. Em cena a grande atriz do cinema francês,
Jeanne Moreau, no alto de seus 85 anos e que, diga-se, é também a responsável pela
inteireza do filme de uma ponta a outra.
Jeanne é quem interpreta Frida, uma idosa que teve grande
vida artística, mas o gênio forte terá reduzido ela a uma presença sozinha numa
casa em Paris. Frida não é francesa, é estoniana, e saiu de casa para levar a
vida no teatro numa situação duplamente difícil: a não aceitação da família de
sua profissão, de um tempo, em que ser atriz estava associada ao mesmo estigma da prostituição, e quando o seu
país está sendo invadido pelos russos. Se as duas razões terão feito da família
um elemento afastado dela, a última tem um agravante principal: depois de tudo,
Frida poderia ter tentado uma maneira de aproximação das suas raízes, mas o
orgulho mais forte que a necessidade, terá dado a ela condição suficiente para
considerar suas raízes mortas, apenas uma assombração a lhe rondar, principalmente
quando chega à sua vida Anne.
Anne é uma cuidadora de idosos que, depois da morte da mãe,
é convidada pela agência de trabalho a que pertence para cuidar de uma senhora
em Paris. A decisão de Anne não é muito pensada: já quase afastada dos filhos,
sem mãe e desempregada, não há nenhum empecilho para o aceite do convite, ainda
mais se ele contribui para lhe reacender todo encanto pela capital francesa. Logo
que chega a Paris, faz questão de rodar boa parte da noite de cima abaixo pelas
ruas da cidade numa espécie de contemplação e alegria pela oportunidade de
recomeço. Mas, nem tudo são passeios, nem encanto, nem olhadas de mulher
desconfiada para a beleza amadurecida de um certo Patrick Pineau que se
apresenta inicialmente como responsável por Frida.
É o gênio forte de Frida, que já tentada ao suicídio várias
vezes e sem qualquer sentido de viver o grande empecilho à felicidade nascente
de Anne. Desenvolve-se uma relação que a cada passo do filme mais se torna complexa,
seja pelos gestos de humilhação a que se vê reduzida, seja pela negação do seu
trabalho, seja pelo preconceito enrascado de Frida, seja ainda pelo ciúme que
ela começará a construir entre Anne e a figura de Patrick. De certo modo, Frida vê em Anne um reflexo do auge de sua vida que além da fama, tinha-lhe aos pés
todos os homens que quisesse, inclusive o próprio Patrick. O jogo de desencorajamento
ensaiado desde o primeiro instante da narrativa é o de afastar para o mais longe
possível não a humilhação de ser servida – coisa, aliás, que parece ter sido o que
fizeram a Frida – mas afastar sua próprio lembrança de um tempo sem retorno.
A convivência tem seus pontos de paz, é verdade, como quando
Frida lhe aceita pela primeira vez as refeições preparadas por Anne, ou quando
lhe presenteia com um casaco e vai com ela ao café de Patrick. Pequenos progressos,
mas que não constrói nada de significativo. Pelo contrário, as solidões vão se
acentuando: sim, porque Frida tem seu mundo próprio, um mundo em ruínas, esvaziado,
de espera pelo fim definitivo; Anne tem o dela, o de servir, mas não ser acolhida
como ela imagina; e Patrick também tem o seu mundo, tudo na sua
vida é cuidar do seu café.
No mais, é um embate de nacionalidades o que aí se constrói. Uma
França sedutora perante uma Estônia apagada – ou não lembram das primeiras
cenas em terras estonianas debaixo de uma atmosfera rude (Anne é quase
estuprada pelo próprio cunhado no princípio do filme) um frio aterrorizador e
uma luz morta que mal se define o contorno das personagens. A grande constatação,
entretanto tem suas limitações: apesar da sedução, Paris é a cidade que não sabe
receber os que dela se apaixonam e fazê-los sentir-se em casa. Observação essa
que nasce das várias tomadas de cena no ambiente da casa de Frida: uma casa ampla,
mas sempre tomada pelo vazio e o aspecto sombrio dos cômodos. Além disso, Paris é
também uma cidade triste e solitária. As voltas que Anne faz pelas ruas à
noite, a contemplação das vitrines, como se desejasse as roupas, os perfumes, é tudo nada mais que o desencanto de uma realidade distante.
O resultado dessa convivência desconfortável não é trágico. Há
um fio de esperança em Ilmar que não permite sair da narrativa sem que todos os
envolvidos na trama não incorporem em si doses diferentes da existência alheia,
reforçando a compreensão da necessidade do outro para existirmos. Frida há de
recuperar sua visão sedutora pela vida; Anne descobrirá um sex appeal adormecido; e Patrick verá que nem tudo se resume aos
bens de consumo. Uma dama em Paris,
discretamente, consegue engendrar vias possíveis para isso.
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