Poesia completa, volumes I e II, de Miguel Torga
Por Pedro Belo Clara
A obra que hoje aqui apresento, ainda que
divida em dois volumes, é uma competentíssima colectânea poética de um dos
maiores vultos da literatura portuguesa do século XX. Iniciativa da editora D.
Quixote, o projecto apresenta, de forma tão abrangente quanto possível, os
principais trabalhos poéticos de Adolfo Correia da Rocha, um médico que no
mundo das letras se notabilizou sob a epígrafe de Miguel Torga e que, durante
largos anos, foi o editor de seus próprios livros. Além disso, e eis o seu
maior motivo de louvor e, consequentemente, de interesse literário, ambos os
volumes conseguem fielmente apresentar a todo o curioso leitor as principais
temáticas da poesia de Torga, tornando-o assim num excelente instrumento de
introdução ao estudo deste autor.
Entender Torga é igualmente entender os dramas
e as alegrias do homem que viveu, amou e sofreu – entre angústias e paixões, receios
e certezas. De uma complexidade simplista, passe a possível contradição, Torga
tanto é capaz de se expressar na mais bela sensibilidade como de descer aos
mais ínfimos recantos de sua alma. É natural, assim, que se depreenda um
carácter ambíguo, agridoce até, balanceando entre castiças doçuras e vincadas
amarguras. No fundo, um carácter profundamente humano.
Para nos envolvermos ainda mais no seu mundo, é
importante viajar, mentalmente, até à sua terra natal, S. Martinho de Anta, em
Trás-os-Montes, Portugal, aceitando assim o convite que não raras vezes Torga,
em suas poesias, nos faz. É no vaguear pelas rochosas imensidades daquelas
terras bravias e agrestes, palco imaginário do mais tradicional dos folclores, que
poderemos intuir os cenários onde os seus pensamentos se fundiram no isolamento
da paisagem.
De facto, a inspiração genesíaca, isto é,
oriunda da terra, é um marco incontornável na obra deste escritor. Tanto que
até abundam, em números altíssimos, as metáforas ligadas ao acto agrícola, das
quais "fecundar" e "germinar" são óptimos exemplos. Neste clima bucólico, Torga
encontra o brilho capaz de iluminar a sua alma, o lenço que enxuga as suas
lágrimas. Em suma, um refúgio – da mesma forma que um filho, pequeno, se abriga
no regaço de sua mãe. Existe, portanto, uma sacralização deste elemento (que para
Torga representa o verdadeiro divino) e uma expressa fidelidade ao mesmo. No
entanto, devido a este processo de reclusão, é igualmente notório o cariz
solitário que a sua poesia por vezes apresenta, bem como o apertado sentimento
que tal evidência lhe confere.
Mas em Torga, ainda que seja sublinhada toda a
importância que o tema anterior merece, jamais se poderá ignorar a questão
religiosa. Ateu, numa primeira fase parece mesmo desejar a solidificação da
crença católica, navegando por tortuosas indecisões sobre o sagrado e o
absoluto. Mas os constantes dogmas, penitências e restrições impostas pela fé
acabam por afastar o poeta das doutrinas do trilho eclesiástico. Mais: não só
nega o Divino como cultiva uma obsessão pela sua muda presença, instigando,
invariavelmente, uma obstinada revolta contra Ele. De facto, o conflito entre
Homem e Deus é um dos aspectos mais centrais da sua obra, eternizando-se,
quase, em cada verso escrito. É aqui que assistimos a um Torga ácido, irónico e
sarcástico, um autêntico revolucionário da crença (ou melhor, da ausência
dela), um assumido agitador, alegremente incómodo e cáustico. No entanto, este
protesto, perene, acaba, com os anos, por fatigar o autor... Em poemas mais
recentes, essa ideia torna-se mais translúcida e vincada. Não que tal o faça
crer em algo mais, diga-se a bem da verdade, mas fomentará a angústia e o
desespero que sempre o envolveram. Motes, claro está, para a criação de muitos
outros poemas. A negação da transcendência resulta ainda num outro sentir: o
medo de enfrentar o absoluto, isto é, aquilo que poderá, ou não, existir para
além da vida que vive. Torga assume, então, um desejo em ser notado, amado
talvez... Principalmente em deixar legado, algo que perdure após a sua morte. Mas,
até esse dia chegar, como chegou em Janeiro de 1995, teria de se debater com a
mais incessante das dúvidas.
Perante tamanha contestação e revolta, é fácil
entender porque Torga escolhe a terra, a mãe de todos nós, como o seu elemento
sagrado. Mas não só. Ao negar Deus, o poeta vira-se para o Homem, o único
personagem desta vida que, segundo Torga, merece "que se lhes cante a virtude".
No entanto, ao celebrar o Homem, depara-se com as falhas da sua condição. Desde
logo, a mortalidade da vida que lhe assiste. Estabelece, portanto, um contacto directo
com o sofrimento humano e com a consciência trágica da sua efémera natureza. E
tudo isto, estimado leitor, se reflecte, com a devida arte e extremoso talento,
na poesia de Miguel Torga.
De uma forma já não tão frequente, poderemos
verificar a amargura que sobeja em Torga perante o contacto com seus
semelhantes (um carácter, talvez vontade, solitário que apenas adensa o
isolamento de que há pouco falei), um sentido instintivo, sexual e mortal da
vida (interligado à noção daquilo que, materialmente, o Homem é), uma
expectativa desconsolada e uma constante dicotomia esperança/desesperança,
resultados de um espírito eternamente ávido e insatisfeito.
Por fim, além dos sempre típicos amores e
desamores de um poeta, aqui impregnados com muitos dos sentires que atrás citei
(indiferença, amargura, entre outros), existe uma relação sóbria com elementos
mitológicos. Não só são eles presença assídua em seus poemas, servindo de mote
a muitos deles, como também nestes Torga se revê, em especial na figura de
Orpheu. Pois, tal como este desceu aos infernos para resgatar Eurídice, a sua
paixão, acabando por não acatar as ordens do resgate e, assim, perdendo a sua
amada para todo o sempre, também o poeta penetra nos longos corredores de seu
espírito para se expressar, poeticamente, da forma mais clara e aberta,
encontrando as mesmas dificuldades, no que à aceitação diz respeito, que
Orpheu. Por isso, a rebeldia desta personagem, bem como a sua perda,
representam a vincada obstinação de Torga em não aceitar os seus limites, insistindo
em resgatar, constantemente, a poesia da obscuridade que a envolve. No entanto,
para sua frustração, sente que apenas assiste ao escapulir do melhor e mais
fidedigno sentido da sua arte poética, adensando assim o seu já pesado drama
interior.
É por isso que, em regra geral, Torga é visto
como um homem complexo. Mas tal carácter somente lhe acrescenta uma
simplicidade deveras convidativa. Acima de tudo, preza pela diversidade de
temas. E é graças a essa característica, no fundo tão humana como qualquer
outra, que tanto se aproxima o leitor do poeta que Miguel Torga foi e, para seu
íntimo gáudio, sempre será. Personagens assim tão talentosas e fascinantes por
certo não permanecerão ocultas entre as brumas do olvido. Como tal, é expressa
a necessidade de o conhecer e, através da leitura, o perpetuar. Tudo o que
atrás foi escrito poderá ser encontrado, após atenta análise, nos volumes que
dei a conhecer. Está nas suas mãos, caro leitor, a escolha de continuar o rumo
que foi já apresentado, aprofundando agora por sua conta e risco. É o desafio
que lhe lanço.
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