Passagens de Graciliano Ramos na Maceió dos anos 30


Por Simone Cavalcante*

Maceió dos anos 30 e o movimento dos intelectuais. Na imagem, da esquerda para a direita: Graciliano Ramos, Aluisio Branco, Théo Brandão, José Auto, Rachel de Queiroz e Waldemar Cavalcante.

A passagem de Graciliano Ramos por Maceió durou seis anos e, nesse período, muitos episódios podem ser alinhavados para revelar o mosaico cultural dos anos 30. Os trilhos dos bondes, os itinerários dos canais e das lagoas e os automóveis conduziam uma população, com pouco mais de cem mil habitantes, revelando seus costumes de época – os bate-papos nos cafés e nas praças, os banhos e mar e de bica, as matinês dramáticas e dos folguedos natalinos. É nesse ambiente, em plena ebulição, que o escritor se estabelece com a família.

Maceió dos anos 30 começava a assistir à vitória do meio urbano sobre o rural e ainda enfrentava problemas antigos: funcionamento precário da educação e da saúde pública, abastecimento deficiente de água e fornecimento de luz elétrica, amontoamento de edificações mal planejadas, enfim, havia uma desordem na ocupação da urbe. As condições desfavoráveis, no entanto, não impediram a efervescência da produção cultural e a formação de um ambiente literário com grande repercussão no contexto local e nacional. Se, por um lado, havia as carências sociais e de infraestrutura, por outro, coube a um segmento da sociedade a oportunidade de vencer a aridez do meio, construindo universos simbólicos, com os esquadros da renovação e do espírito crítico.

Vista panorâmica da Rua do Comércio. Um dos centros da boemia de Maceió nos anos 30.

Pelas ruas, becos e vielas dessa cidade caótica, Graciliano trafegou inúmeras vezes, enquanto trabalhava, escrevia em jornais e dava vazão à sua criação literária. Entre os lugares que costumava frequentar, estava um café atraente, o Ponto Central, localizado na esquina do cruzamento da Rua do Comércio com a Livramento. Nesse ambiente, fez amizade com um grupo de escritores e intelectuais ainda hoje referenciados, entre os quais se destacam Jorge de Lima, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, Rachel de Queiroz, Manuel Diégues Júnior, Carlos Paurílio, Valdemar Cavalcanti, Théo Brandão, Jayme de Altavila, Alberto Passos Guimarães e Santa Rosa. alguns desses jovens nem ao menos haviam atingido a maioridade, e já movimentavam a vida cultura da capital, com a fundação de agremiações, como o Cenáculo Alagoano de Letras e o Grêmio Literário Guimarães Passos; a organização de encontros para celebrar os ventos do Modernismo, como a Festa da Arte Nova e a Canjica Literária; a realização de palestras sobre a arte moderna, como fez a Liga contra o empréstimo de livros; e a criação de revistas literárias, das quais se destaca Novidade, que atingiu a marca histórica de mais de vinte números publicados.

Confundidos em meio à clientela de estudantes, intelectuais e trabalhadores do comércio, eles participavam  de distraídos bate-papos e, tomadas pelo clima de renovação, compuseram seus escritos da época. Os romances Menino de engenho, Doidinho e Banguê (José Lins do Rego), João Miguel (Rachel de Queiroz), Caetés, São Bernardo e Angústia (Graciliano) e o livro O mundo do menino impossível (J. de Lima), marco da adesão do poeta ao Modernismo, são frutos, por exemplo, da época em que seus autores viveram em Alagoas. E essa producao foi decisiva para inscrever esses escritores do Nordeste no cenário da literatura brasileira. O chamado Grupo de 30, como ficou conhecido, não se aglutinou em torno de um único projeto literário politicamente consolidado, ainda que algumas obras carregassem o gérmen de uma possível revolução da humanidade. Como ilhas dispersas, cada qual trilhou um estilo individual de ficcionar, poetizar e refletir os problemas sociais, políticos e econômicos de seu tempo.

Depois de anos de convivência, a maioria desses escritores e intelectuais migrou, por diversos motivos, para outros estados, num movimento denominado hoje de “diáspora caeté”, e tiveram visibilidade em importantes espaços políticos e culturais do país. Nessa leva, Graciliano deixa Maceió e segue para o Rio de Janeiro. Um ano depois, em liberdade, vai substituindo o ambiente literário do Café Ponto Central pelos encontros na Livraria José Olympio. Mas os tempos difíceis e a mudança de ambiente não conseguiram apagar de sua trajetória algumas convicções definitivas: a prática de valores éticos, a fidelidade aos amigos, como Jorge de Lima, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, e a liberdade de criar mundos, capazes de denunciar as fragilidades da condição humana. E é nesse chão histórico, de linhas tortas, que a obra do mestre Graça se inscreve como um clássico na literatura mundial.

Notas

Em 2011, Angústia, o mais maceioense dos livros de Graciliano Ramos chegou aos 75 anos de sua publicação com uma edição especial da Editora Record. O romance tem edições ao redor do mundo: no Uruguai, desde 1944; Estados Unidos, desde 1946; Itália, desde 1954; Portugal, desde 1962; Alemanha, desde 1978; Espanha, desde 1978; França, desde 1992; Holanda, desde 1995; e México, desde 2008. Só no Brasil somam-se mais de 63 edições. O livro foi também ganhador do Prêmio Lima Barreto.

A seguir preparamos um catálogo com imagens da Maceió do romance Angústia de Graciliano Ramos.




* Simone Cavalcante é jornalista, designer gráfica e escritora. Autora de Literatura em AlagoasO texto foi publicado inicialmente em Graciliano. Ano 1, n. 1, set. 2008.

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