Marcel Proust
O crítico André Maurois descreve La recherche du temps perdu como uma das maiores obras da imaginação
de todos os tempos. A tradução literal para o título da obra por Em busca do tempo perdido contém em si
uma pista para compreensão desse monumento literário. Depois de ter perdido
tempo a viver uma existência diletante no mundo da moda, decidiu voltar a
dedicar sua via à literatura, e para tentar, finalmente, alcançar a elaboração de
um grande trabalho que ele sabiamente se sabia capaz de realizá-lo.
Em busca do tempo
perdido foi a chance que teve Proust para justificar sua vida e para
enganar sua morte por meio de um grande ato de criação artística. Compreendendo
esse lugar da arte como redentora da vida que indiretamente terá sido motivo de
criação para outros escritores. Mesmo José Saramago que relutou várias vezes
que a literatura não tinha capacidade de mudar o mundo, admitiu certa vez que a
literatura é vida. Proust, portanto tinha razão. E sua razão não é justificada
apenas por visão particular do escritor português, ela está próximo do gesto
criativo do extenso trabalho que lhe sugou a vida própria e no que ele
significou depois posto para o público integralmente em 1927. A matéria da
memória, artefato com que engendrou o tempo
perdido ultrapassou o passado, o presente e é lançado para um futuro
infinito.
Proust nasceu num dia como hoje de 1871. Seu pai era
professor de medicina, vindo de uma tradicional família católica e sua mãe,
dona de casa, judia. Embora estivesse convencido desde pequeno de sua “vocação”
para a escrita, Proust preferiu ir buscar outros caminhos para a partir deles
sanar de fato suas dúvidas sobre a decisão de se tornar um escritor.
Aos vinte anos, ajudou a fundar um periódico que teve curta duração,
o Le Banquet. Nesse jornalzinho
aparecem seus primeiros textos. Também em La
Revue Blanche foi outra publicação do gênero que antecedeu seu primeiro
livro publicado, uma coletânea de ensaios intitulada Les Plaisirs et Les Jours. Depois desse primeiro trabalho
publicado, Proust estava encantado com a obra de Ruskin embrenhou-se na
tradução de A Bíblia de Amiens e de Gergelim e lírios para o francês. Um traço
dessa paixão do escritor pelo trabalho de Ruskin se deu pelo gosto que o inglês
tinha pelas catedrais góticas, sua aproximação entre estética e existência e
pela beleza de Veneza. A crítica encontra influências dessa relação pictórica
na escrita de frases longas e o seu percurso nos detalhes de percepções que
fogem do lugar comum do realismo tacanho. Esse trabalho visual da obra de
Proust chegou a servir de base para que o pintor estadunidense Eric Karpeles
organizasse um livro-catálogo que recria passagens dos livros de Em busca do tempo perdido – Paintings in Proust.
Antes de sua obra maior, Proust já havia esboçado um
romance, Jean Santeuil, que foi
abandonado e só publicado em 1954, portanto, postumamente. Proust morreu em
1922. Há uma série de acontecimentos que terá servido de impulsão ao jovem escritor
ir manobrando seu retorno para a literatura. Em 1905, morreu a pessoa que ele
mais amava, sua mãe. O acontecimento produziu nele um colapso nervoso e agravou
seu o estado de saúde – Proust era portador de asma crônica. Sem mãe, ele desenvolveu
um grave problema de insônia. A perda da mãe, entretanto, não foi de um todo
negativa: mesmo nunca se recuperando desse acontecimento, a ausência dela permitiu
que ele se assumisse gay e viesse a tratar do assunto na sua escrita. Também isto
lhe deu independência. Dois anos depois, por exemplo, mudou-se para morar
sozinho num apartamento e aproveitou as noites de insônia para dar forma a Em busca do tempo perdido.
Desenhou aí uma profunda compreensão psicológica da
existência e ressignificou de igual maneira os valores da descrição. A primeira
vez em que foi publicada, Em busca do
tempo perdido obedeceu a nove volumes: Du
Côté de chez Swann, A l’Ombre des
Jeunes Filles em Fleurs, Le Côté de
Guermantes I, Le Côté de Guermantes
II, Sodoma e Gomorra I, Sodoma e Gomorra II, La Prisionnière, Albertine disparue, e Le
Temps Retrouve. O primeiro volume
que agora, em 2013, inteira 100 anos de sua publicação foi editado por conta
própria e mesmo depois da sua aparição, encontrar uma editora foi o caminho dos
mais tortuosos que o escritor encontrou. Mesmo assim, quando publicada, ganhou
em 1919, o Prix Goncourt. Quando Proust morreu apenas as quatro primeiras
partes do ciclo estavam publicadas. As outras cinco foram publicadas
postumamente.
Recorrendo a relação entre Proust e a pintura é preciso
lembrar aqui da sua obsessão pelos mestres do Renascimento, como Leonardo, Botticelli,
Giotto, Mantegna, Bellini. Conta Daniel Piza que ele era tão obcecado pelo
Ciclo de Santa Úrsula, de Carpaccio, que passava horas sentado diante dele, de
sua intrincada rede figurativa de episódios históricos com episódios privados,
na sala da Galeria dell’Accademia sempre que ia a Veneza. Não por acaso, é o
único pintor que aparece em todos os volumes de Em busca do tempo perdido. Também tinha predileção por Velásquez,
Ticiano, El Greco, Poussin. Da geração que o precedeu, a dos impressionistas
franceses, tinha paixão por Manet, Monet e Renoir; gostava igualmente de
Rembrandt e Vermeer. No volume de Sodoma
e Gomorra há uma passagem em que o escritor Bergott sobre o muro da Vista
de Delft lamenta não ter feito sua linguagem “preciosa em si mesma” como
aquelas camadas de amarelo. “Sem arte”, diz ele em Tempo redescoberto, “as paisagens seriam tão desconhecidas de nós
como as da lua”; “graças à arte, em vez de ver um mundo apenas, o nosso, vemos
que o mundo se multiplica”, cada um com sua radiação. Isso não significa ser
mais feliz, mas estar mais perto da verdade e sua dor.
Notas:
- Visconti, diretor de Morte em Veneza pensou em filmar Em busca do tempo perdido, mas morreu sem conseguir o feito. Mas, outros cineastas se aventuraram ao mesmo: em 1984, Volker Schlölondorf filmou Um amor em Swann. Depois, em 2001, Raoul Ruiz visita a obra do escritor francês em O tempo redescoberto que, apesar ser uma adaptação mais ambiciosa que a de Volker, não vista com olhos pela crítica devido a incapacidade de traduzir para os não-conhecedores da obra de Proust pontos básicos da narrativa.
- Stéphane Heuet trabalha na adaptação de Em busca do tempo perdido para os quadrinhos. E já publicou cinco dos sete volumes que no Brasil foram traduzidos por André Telles e editados pela Jorge Zahar Editora.
- Outra dica para os que não tem coragem de abocanhar os sete volumes de Em busca do tempo perdido é adquirir o áudio. Sim, a audácia é de Neville Jason e Naxos Audio Books que converteram as mais de 3.000 páginas e 1,5 milhões de palavras em 151 horas de áudio. Mas, atenção! Está em inglês. O feito deve entrar para os recordes como a primeira obra literária mais extensa em formato de audiobook.
Ligações a esta post:
>>> Comentamos sobre os 100 anos de No caminho de Swann e outras novidades sobre o escritor francês num post aqui.
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