Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago

Por Pedro Fernandes



Já muito antes de publicar Ensaio sobre a lucidez em 2004, a mídia recolhia depoimentos do escritor – desde quando da recepção do Prêmio Nobel de Literatura em 1998 – sobre a atual situação mundial. Uma dessas situações abordadas em suas falas é a sobre o estágio porque passam as democracias ao redor do mundo. Em grande parte instituída depois de estados de exceção e como um modelo mais adequado porque, dentre os vários elementos, numa democracia, o Estado não está submisso a nenhuma outra instância e, tampouco, os seus indivíduos não devem ter seus direitos de voz e ação cerceados, além da liberdade de escolha de seus representantes, o mal estar da democracia, dizia Saramago, é que ela está aí, sabe-se que ela existe, mas, como figura como instituição sagrada, tornou-se uma coisa sobre a qual ninguém discute sobre; na maioria dos casos, resume-se a um ritual operacional que tempos em tempos serve para um rodízio de trocas e permanências de parlamentares e pronto.

Mestre em transformar temas do tipo literatura – aliás, se formos ver boa parte da obra saramaguiana depois de Ensaio sobre a cegueira – sempre tocará em algum elemento da contemporaneidade, quanto aos modos de ser e estar no mundo, esse tema da necessidade de discutir a democracia serviu-lhe à escrita de Ensaio sobre a lucidez; um romance que está longe de alcançar o lugar de títulos como Memorial do convento, Levantado do chão, O ano da morte de Ricardo Reis e outros, mas que não deve ser posto de lado como um mau romance ou ainda um daqueles livros que não merecem nosso tempo e atenção. Na verdade, o tônus ideológico e político do escritor português, comunista hormonal, como bem se definiu, está circulando com todo vigor necessário nesse romance. Quer, então, motivo maior que este?

Não é apenas a democracia o ponto central desse romance, há uma ideia maior que nasce desde Ensaio sobre a cegueira e que se conclui aqui. Aquela ideia de que estamos todos mergulhados numa cegueira branca, pensada no romance de 1995, é retomada pela ideia do limite entre loucura e lucidez. E se lá o interesse estava no modelo social construído pelo Ocidente (o mundo) capitalizado, aqui, é foco do romancista a compreensão de que o principal elemento que sustenta a democracia, o atual modelo político que é propagado aos quatro ventos como um dos maiores achados da criação humana, esse padece de um desgaste e precisa urgentemente de uma tomada de reflexão por parte dos indivíduos sobre o real sentido desse sistema, se ele atende às expectativas a partir daquilo que nos é apresentado ou não.

Num dia de votação que parece ser como os que já tão bem conhecemos, os funcionários de uma seção eleitoral se deparam com uma situação insólita, que mais tarde será confirmada de maneira ainda mais espantosa: todos os habitantes de uma cidade decidiram, por ampla margem, por em xeque o processo eleitoral votando, tanto os do partido da direita, do centro e da esquerda em branco; mesmo tendo sido o pleito repetido uma vez mais o número de votos em branco atinge a casa dos “oitenta e três por cento”. A constatação levará o governo ao lado da polícia e de outros órgãos institucionais a instaurar um conjunto de manobras a fim de encontrar entre a população o agente causador do mal branco.  

A sociedade causadora da situação em muito se assemelha ao atual estágio social porque passamos: é regida por um sistema político obsoleto que já não corresponde mais ao anseio de sua população, mas que é vista pelos que estão no comando e fora dele como uma instituição inabalável, exemplar e satisfatória e, por isso mesmo, não carece de discussão. A via pela qual ficamos sabendo que o estágio de comodismo da cidade ficcional corresponde ao momento contemporâneo é dada não pela voz narrativa; é num dos primeiros momentos da primeira fase da eleição, que um dos políticos, personagem do romance, não hesitará em falar: “Os votantes de meu partido são pessoas que não se amedrontam por tão pouco, não é gente para ficar em casa por causa de quatro míseros pingos de água que caem das nuvens.” Essa certeza inabalável só pode ser lida pela via de que aquela cidade não costuma questionar ou se por frente às decisões já conformadas. Há, claramente no gesto, uma classe política que detém o controle social e uma classe que absorve os mandos.

Mas, tomados por um lampejo que, se não renovar a situação colocará, depois de expor a fragilidade do sistema, uma pauta de discussão permanente, todos optam por um boicote à ordem, reduzindo o resultado do pleito a extensa porcentagem de votos em branco. Assim, esse tipo de voto, que representa o vazio, sem valor, e o qual, apesar do uso não constitui nenhum sentido, adquire outra conotação: do branco, esvaziado, o voto passa a ter um sentido tão mais forte que o voto preenchido, adquire a potência questionadora da ordem. O gesto, entretanto, será recebido pelo Estado por outra via. Ao sentir que pleito se constituiu numa ameaça ao modelo político, a necessidade será a de impor seu poder, primeiro com uma operação de espionagem, “numa ampla e sistemática acção de infiltração entre a população, a cargo de agentes convenientemente preparados, a qual possa levar-nos ao conhecimento das razões do ocorrido”. A trajetória, então se desenha pela via oposta do que designa o sistema democrático, uma vez que tomará o resultado do pleito como ameaça à sua liberdade de atuação e fará dela um itinerário de cerco, oclusão, a fim de, que no sufocamento, possa deter os seus “desmanteladores” e subversivos da ordem.

Entre atitudes de toda a sorte a fim de preservar a idoneidade do Estado e a conjuntura política o  sistema apresenta-se situado entre o limite de ação – com forte apoio da mídia e da polícia – e da reação que vai sempre na direção contrária dos revoltosos. Pegos de surpresa os políticos não estarão interessados (ou não compreenderão) as vozes que salta dos quatro cantos desse país imaginário. Tudo, então, numa quebra de braço entre o poder dominante e o povo dominado (mas já não louco) se torna num verdadeiro jogo de xadrez, em que quem vence por último é a instância primeira.

A antonímia lucidez/loucura é o signo que inscreve e conduz todas as decisões ao longo dessa narrativa, convidando o leitor, através do gesto irônico do escritor que especula, que busca um resposta para, a “repensar as estratégias anestesiantes que conduzem os homens a aceitar passivamente o inaceitável num século de horrores conscientemente arquitetados e teoricamente justificados” para nos utilizarmos dos termos de Teresa Cristina Cerdeira no seu texto “Espaços concentracionários e as crises da utopia”.

A constatação de que força e a loucura parece ser mais forte não é, entretanto, um olhar pessimista do romancista sobre a atual situação. É também o olhar esperançoso sobre a capacidade de pela união – repisando o coro “o povo unido jamais será vencido” – ainda ao menos por as situações opressoras em xeque ou entrever lugares de discussão a respeito. O par vocabular sobre o qual está centrado esse romance conduzirá o escritor a perscrutar a relação democracia/liberdade-ditadura/prisão, apostando que o que separa ambos os estágios é um jogo de fios invisíveis que não raras vezes se interseccionam e o primeiro reduz-se no segundo. A palavra adquire nesse romance como um fio espiralar que deve reaver as ideologias; a costurar as imagens que dão o motivo da narrativa, o escritor, pela palavra, no instante que apresenta denuncia, no instante em que revela propõe. É um romance, portanto, mais atual que tudo que terão escrito os analistas acerca dos desmantelamentos dos poderes opressores que vimos assistindo ao redor do mundo.  


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