Duas palavras sobre as imagens (ou vice-versa:) duas imagens sobre as palavras
Por José Carlos Avellar*
cena de São Bernardo. |
Os amigos discutiam a precariedade do Grêmio Literário e
Recreativo, queriam abrir uma biblioteca, “a instrução é indispensável, a
instrução é uma chave, a senhora não concorda, D. Madalena?”. Paulo não
concorda, “biblioteca num lugar como este! Para quê?”. Acha que não se deve
confundir “instrução com literatura de papel impresso”. Madalena concorda com
ele: “Assisti um dia destes a uma fita no cinema, e creio que aprendi mais do
que se visse aquilo escrito. Sem contar que se perde menos tempo”.
No quarto de pensão, grudadas na janela, as moças espiam o
capítulo da novela na televisão da casa em frente. Num canto, alguém lê um
romance e a todo instante fecha o livro. Interrompe a leitura, olha a capa,
abre o livro, lê algumas linhas, volta a ver a capa. Gostava de livros com
figuras, e aquele só tinha uma figura na capa.
O menino ainda não tem nome nem aprendeu a ler, mas ganhou
um livro e está encantado com o presente. O irmão mais velho adverte, o livro
está de cabeça para baixo. O menino protesta, não está lendo errado não. Mostra
a página, a figura igual, a mesma, de cabeça para cima ou de cabeça para baixo.
Não sabia ler palavras, mas sabia ler figuras. O irmão é que não entendia nada de
livro.
Na repartição, no cinema, no jornal, no café, na rua, na janela,
trancado no quarto, Luís sentia a vida passar como um filme estrangeiro sem
legendas. Caminhava como um cego. “Quando a realidade me entra pelos olhos, o
meu pequeno mundo desaba”. Ia maquinalmente ao cinema. “Podia estar ali a
distrair-me com a fita. Depois, finda a projeção, instruir-me vendo as caras”,
mas ficava “de pé, ao fundo, por baixo da cabina, sem ver a tela”. Aflito e
apressado, não via ninguém, não prestava atenção às coisas. “Não sei para que
diabos quero olhos”.
Quatro imagens: duas verbais, as de São Bernardo e Angústia,
de Graciliano Ramos, duas visuais, as de A
hora da estrela, de Suzana Amaral, e Abril
despedaçado, de Walter Salles. Quatro pedaços de histórias em que o livro é
personagem de cinema e o cinema, personagem de livro.
Na verdade, o cinema é menos que um personagem na história
de Paulo Honório, dono de terras e gentes de São Bernardo “aqui não é como lá
fora. O cinema, o bar, os convites, a loteria, o bilhar, o diabo, não temos
nada disso”. Em São Bernardo não
existia o cine Floriano para dona Glória vender bilhetes. Na verdade, o livro,
apenas um figurante na história de Macabea (inspirada no romance de Clarice
Lispector) e na de Tonho e Pacu (inspirada no romance de Ismail Kadaré). Na
verdade, o cinema é um pouco mais que um figurante na história que Luís da
Silva conta ainda não completamente restabelecido das visões que o perseguiam –
visões com um certo quê de cinema –, “umas sombras que se misturam à realidade
e me produzem calafrios”.
Estas referências (embora ligeiras) testemunham uma vontade
do cinema deixar-se desafiar pela literatura e da literatura deixar-se inspirar
pelo cinema. Deixar-se desafiar e influenciar não por uma obra em particular,
mas pelo processo criativo. Nessas obras, o autor filma como quem escreve,
escreve como quem filma.
cena de Memórias do cárcere |
A literatura é mesmo central em Vidas secas e Memórias do cárcere,
de Nelson Pereira dos Santos, e em São
Bernardo, de Leon Hirszman, mas não porque eles se inspiram em livros.
Central porque, de um certo modo, os três filmes conversam com os livros para
retornar ao chão da palavra, à imagem-figura ou à imagem-ideia de onde nasce o
texto. Buscam na imagem o que nela se movimenta em direção à palavra. Da mesma
forma, o autor buscando na palavra o que nela é um chão para a imagem, o cinema
é de fato central em Angústia de Graciliano Ramos. Os filmes de Nelson e de Leon nos remetem
à literatura, o romance de Graciliano nos remete ao cinema. Examinando a
questão de um ponto de vista exclusivamente cinematográfico, talvez seja
possível falar de três romances feitos para existir na tela e um filme feito
para existir no papel.
No papel, o cinema dos domingos – Julião Tavares e Marina
“de braço dado, bancando marido e mulher, ele com ar bicudo e saciado, ela bem
vestida como uma boneca dengosa” – o cinema das “horas horrivelmente cacetes em
que pedaços de duas pessoas se encontravam”, o cinema da neta de D. Aurora, dos
ventiladores parados, do grande calor, da datilógrafa bonitinha “com uns olhos de
gato que acariciavam a gente”. E sobretudo o cinema das sem-vergonhezas, “uns
beijos safados, língua com língua, nem lhe conto. Provavelmente as moças saem
de lá esquentadas”. Sinha Germana, “que só tinha aberto os olhos para o velho
Trajano”, agora, no cinema, “ouvindo as cantigas dos marmanjos”, não seria a
mesma com essas sem-vergonhezas. Hábitos diferentes, necessidades novas. Por
causa do cinema, “o mundo está perdido”.
Na casa em frente Dona Mercedes, a espanhola madura amigada
em segredo com uma personagem oficial que lhe entra em casa alta noite, “parece
uma artista de cinema”. Na casa ao lado, Marina, “uma sombra como acontece no cinema
quando se apresentam mulheres nuas”.
“O cinema é o diabo”. Entre um primeiro plano (“entravam no
cinema, Julião Tavares comprava um jornal”) e um travelling (“dona Aurora e a neta marchando para o cinema”), Luís
se sentia vigiado. Pelos miseráveis da polícia, pelo cinema. “Tenho a impressão
de que uma objetiva me pegou, num instantâneo. Ficarei assim, com a perna
erguida, a pasta debaixo do braço, o chapéu embicado. Luís da Silva, a caminho
da repartição, lesando, pensando em defuntos”.
“Sapecando as pestanas em cima de um livro”, refugiava-se do
cinema. “Adquiri cedo o vício de ler romances e posso com facilidade arranjar
um artigo, talvez um conto”. Mas seus escritos, pensa, não prestam. Pior, pensa
que a linguagem escrita não presta. É uma safadeza inventada para enganar a
humanidade com mentiras. “Acabe com essa literatura!”, exclama impaciente para
o amigo Moisés que na saída do cinema lia um jornal encostado num poste de
iluminação. “Não serve”.
“Romance
desagradável, abafado, ambiente sujo, povoado de ratos, cheio de podridões, de
lixo”. Graciliano quase repete Luís da Silva ao comentar seu romance, dez anos
mais tarde. “A personagem central estava parada, revolvendo casos bestas,
inúteis: um sujeito a aporrinhar-se porque uma fêmea safada lhe fugia das
garras, outro a encher dornas, uma criatura cansada a lavar garrafas”. Como
haviam surgido em sua imaginação aquelas figuras? Talvez no tempo em que “metia
preposições em telegramas, consertava sintaxe”. Na Imprensa Oficial “via lá
embaixo, sob um telheiro, o indivíduo magro a mover-se entre pipas, a encher
dornas, a mulher sacudindo-se, lavando garrafas. Perto, montes de lixo e cacos
de vidro”.
Para contar isso que viu (um filme estrangeiro sem legendas?)
imaginou um espectador que não sabe para que diabos quer olhos, em delírio,
numa escuridão cheia de pancadas. Ainda não estava restabelecido completamente
e da inconsciência prolongada lembra-se apenas de um homem sem rosto, sentado
na cadeira em que tinha ficado o paletó. – “era como se me achasse num cinema”.
Com a sensação de estar no cinema, escrevia à espera da
polícia. “Por que não me vinham buscar os miseráveis da polícia?” Na prisão,
pensava, faria um livro, escreveria a lápis, em papel de embrulho, nas margens
de jornais velhos”. Um livro “amarelo, papulo, faria um grande livro, que seria
traduzido e circularia em muitos países” Não entendia por que a brincadeira de
gato com rato. “Por que não vinham logo?”. Graciliano – enquanto anotava o que
Luís da Silva escrevia esperava também a gente da polícia que viria prendê-lo –
comenta dez anos mais tarde, em Memórias
do cárcere, talvez não propriamente o livro que escreveu, mas a escrita de
seu personagem, Luís da Silva: Angústia,
diz, é um “solilóquio doido, enervante. E mal escrito”.
2.
“Estas palavras que escrevo andam em busca de seu sentido e
nisso consiste todo o seu sentido”. A frase é de Octavio Paz. Está num texto em
que discute a diferença entre a imagem (construye
presencias) e a palavra (emite
sentidos), a diferença entre a pintura (nos
ofrece una visión) e a literatura (nos invicta a buscarla). Sentido,
prossegue, é aquilo que as palavras emitem e que se encontra além delas. “Es
aquello que se fuga entre las mallas de las palabras y que ellas quisieran retener
o atrapar”. O sentido não está no texto mas fora dele. E anota ao final de um
parágrafo de El mono gramático a
frase citada acima: “estas palabras que escribo andan en busca de su sentido y
en esto consiste todo su sentido”.
“A afirmação pode parecer estranha, mas na realidade a
essência do cinema não está nas imagens e sim no texto visual que construímos
com elas.” A frase é de Sergei Eisenstein. Está num texto que se opõe ao que
diz Béla Balàsz (“o fundamental no cinema está no trabalho do fotógrafo”) para
afirmar que o sentido no cinema não está nas imagens, mas fora delas, nas
relações entre elas. O fundamental não é mostrar pessoas e coisas, mas
estabelecer relações. Cinema, diz Eisenstein em Béla esqueceu a tesoura, existe perto da literatura, perto do discurso,
perto da fala que atribui um sentido simbólico (não literal, não ao pé da
letra, não fotográfico) às pessoas e coisas visíveis na imagem.
Imaginemos que as diferentes formas de arte dialoguem entre
si, busquem inspirar-se umas nas outras, ir para fora de si mesmas para melhor
se inventar. A partir desse ponto torna-se possível pensar, por exemplo, num
romance (o sentido não está nas palavras, mas fora delas) feito como cinema e
um filme (o sentido não está nas imagens, mas fora delas) feito como um romance.
Paz, o texto é de 1974, vê a imagem com limites espaciais,
mas sem princípio nem fim, ao contrário do texto, que começa em um ponto e acaba
em outro. Nenhuma pintura pode contar porque nenhuma transcorre, prossegue Paz.
Em nenhuma imagem acontece alguma coisa, nem nas que têm como tema acontecimentos
reais, nem nas que nos dão a sensação de movimento. Falar e escrever, contar e
pensar, ao contrário, é transcorrer, ir de um lado a outro, acontecer, passar
(como um filme?).
Eisenstein, o texto é de 1926, vê o cinema no começo de um
segundo período literário: o hábito de ir aos livros buscar uma história para
contar em imagens em movimento dos primeiros anos do cinema começava então a
ser substituído pela identificação de possíveis procedimentos estilísticos
comuns ao cinema e à literatura e pela análise daquilo que, por ser próprio do
texto literário, poderia ser tomado como um desafio para o cinema (como
assinala Paz) mais do que nos oferecer uma visão convidar-nos a buscá-la. O
fundamental entre as artes resulta de interdependências, e uma imagem de cinema
só emite sentido, sublinha Eisenstein, quando se insere numa relação de
interdependência com outras imagens.
cenas de Vidas secas |
O desconcerto do menino mais velho e do menino mais novo na
cidade de Vidas secas, o mundo
subitamente alargado, “impossível imaginar tantas maravilhas juntas”, pode ser
tomado como uma quase metáfora da relação entre o cinema e a literatura se ao
lado da dúvida apresentada timidamente pelos meninos, inserimos (timidamente
também) o contracampo, o fora de quadro dessa dúvida. “As preciosidades que se
exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas“, a dúvida soprada no
ouvido do irmão, provavelmente aquelas coisas tinham nomes. “Puseram-se a
discutir a questão intrincada”. Todas as coisas têm nome? “Como podiam os
homens guardar tantas palavras?” No contracampo, questão igualmente intrincada,
saber se todos os nomes têm coisas. Se toda palavra tem uma imagem. Se toda
imagem tem uma palavra. Se uma coisa pode existir antes do nome (num filme?).
Se um nome pode existir antes da coisa (num texto?).
Talvez um procedimento essencial da narrativa
cinematográfica, o fora do campo, possa figurar a sensação, comum à todas as
artes, de que o verdadeiro significado da obra está além do imediatamente
identificável nela. Nem nas palavras de uma poesia ou romance, nem nas imagens
de uma pintura ou filme, o sentido nasce de uma dupla relação de
interdependência: interna, entre as partes que constituem a obra, e externa,
entre uma obra em particular e toda e qualquer outra obra de arte. Um romance,
depois de ser o que efetivamente é, quase em absoluta simultaneidade com o que
efetivamente é, vive como se fosse o relato de um espectador de cinema que nos
conta um filme que acabou de ver ou como descrição de uma imagem
cinematográfica esboçada, na imaginação, ainda sem forma definitiva. E um
filme, sem deixar de ser o que efetivamente é, vive ao mesmo tempo como o
relato de um leitor que nos conta um livro ou como uma anotação do instante que
precede a invenção da palavra, como um registro da palavra uma fração de
segundo antes dela ganhar sua forma definitiva.
Assim como Angústia
não traduz uma história contada no cinema, mas se inventa num diálogo com o
modo de contar do cinema, Vidas secas,
São Bernardo e Memórias do cárcere – os filmes – não ilustram as histórias
contadas nos romances. Eles se inventam a partir do prazer e desafio da
leitura, e nessa invenção transferem para um espaço vizinho as palavras de
Octavio Paz: as imagens que filmamos andam em busca de seu sentido e nisto
consiste todo o seu sentido.
Notas
São Bernardo foi escrito em 1934 e ganhou adaptação para o cinema em 1972. Como filme recebeu nove importantes prêmios em festivais dentro e fora do Brasil. Depois, o livro teve uma adaptação para a TV pelas mãos de Lauro César Muniz e direção de Paulo José e veiculada na Rede Globo. O filme completo está on-line e pode ser visto a partir do Canal do Letras no YouTube, aqui.
Vidas secas é considerado uma as obras-primas da literatura nacional. Foi publicado em 1938. Recebeu importantes prêmios como o Prêmio William Faulkner nos Estados Unidos em 1962. É também o livro mais traduzido de Graciliano Ramos. Foi adaptado para o cinema em 1963 e ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1964 e o Prêmio de Melhor Filme pelo Office Catholique Internacional du Cinéma. O filme completo está on-line e pode ser visto a partir do Canal do Letras no Youtube, aqui.
Memórias do cárcere é 1953 e foi adaptado para o cinema em 1984. Recebeu diversos prêmios, entre eles, o de Cannes e o APCA. O filme completo está on-line e pode ser visto a partir do Canal do Letras no YouTube, aqui.
Além de Vidas secas e Memórias do cárcere, Nelson Pereira dos Santos filmou em 1980 o conto "Um ladrão", do livro Insônia.
Abaixo preparamos um catálogo com mais informações sobre os três filmes e com textos opinativos sobre:
* Texto escrito para o catálogo de programação do Instituto Moreira Salles na Festa Literária Internacional de Paraty 2013.
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