Coração do Dia, Mar de Setembro, de Eugénio de Andrade
Por Pedro Belo Clara
Nesta
recente iniciativa, datada de Fevereiro deste ano, levada a cabo por uma das
mais conceituadas editoras portuguesas de poesia, Assírio & Alvim,
reúnem-se dois dos trabalhos mais representativos da inicial fase poética de
Eugénio de Andrade, pseudónimo literário de José Fontinhas. A bem da verdade,
admita-se, apesar destas duas obras se inserirem numa primordial abordagem do
autor ao mundo poético que criará, notam-se, em ambas, e de forma perfeitamente
translúcida, as principais marcas deste admiravelmente talentoso poeta – um
lírico confesso, dotado de uma sensibilidade extrema. Serão, assim, as
indistintas linhas que fariam de Eugénio de Andrade aquilo que foi (e é) a
entrarem em contacto com a realidade de todo o leitor que por elas se interesse.
O
primeiro dos trabalhos, denominado Coração do Dia – epígrafe furtada ao
título de um dos poemas que o compõem –, foi publicado em 1958 e pauta-se por
uma só linha, bastante visível e distinta ao longo do mesmo: a da morte da mãe
de Eugénio. Aliás, o livro seria mesmo publicado no ano em que se registou o
falecimento do dito familiar, estando, de forma tão natural e óbvia, à sua
memória dedicado. Essa perda, suas feridas e incidências, quase que já se
poderá adivinhá-lo, irão acompanhar o poeta ao longo da sua existência remanescente,
verificando-se até, posteriormente, novas referências ao sucedido e à figura
que a ele se anexa. Afirmar-se-á, então, que a temática de Eugénio de Andrade
ficará sempre marcada por tal acontecimento. E é aqui, neste trabalho, que esse
pilar constitui a sua sólida fundação.
Iniciando
as hostes poéticas com uma invocação à própria Poesia, Eugénio, dentro da sua
clara modernidade, retoma os motivos clássicos, inspirando-se nas ancestrais
invocações às musas. Em tempos idos, tal era uma prática bastante recorrente
entre os poetas, por forma a que estas fontes de inspiração os bafejassem com
as suas boas venturas. Reunida, então, a força emotiva que à arte poética
sempre convém imprimir, Eugénio desenrola o longo madrigal da sua melancolia e
das causas, agora óbvias, que a instigam. Até desembocar, por fim, no poema
“Despertar”, aquele que encerra a obra em questão, e onde novas razões de
existir são reevocadas e tidas, finalmente, em séria consideração. Parece,
portanto, que o poeta deseja colocar uma pedra sobre o assunto, encerrá-lo e
arrumar numa qualquer prateleira da memória. Contudo, como antes foi escrito, a
cicatriz que tamanhos golpes deixam para trás sempre se cristaliza numa perene
lembrança.
A
unidade deste livro, como agora se poderá constatar, é deveras notória, e não
floresce como os aleatórios frutos do acaso. O próprio autor, na época da sua
publicação, referir-se-á ao mesmo como sendo «um só poema», sinal de que todas
as partes que o constituem são pedaços fiéis de uma imagem e intenção
superiores. E, como tal, perfeitamente conscientes no que ao acto da sua
composição diz respeito.
SEM TI
E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.
Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
(Eugénio de Andrade, in Coração do Dia)
Em Mar de Setembro, assiste-se a uma completa antítese da
ideia e do sentir que o anterior título havia legado. Publicado em 1961, fora
do mercado, após umas férias no País Basco, onde uma doce paixão eclodiu no
coração do poeta, assume-se como um conjunto de canções (ou cânticos, se
optarmos pela formalidade da caracterização) que exaltam as paixões e, claro,
os amantes. Mais tarde, Eugénio de Andrade admitirá que este livro será sempre
a sua «dívida maior» para com aquela região de Espanha. Uma vez mais, com um ou
outro desvio, a unidade desta obra em particular é por demais evidente, tanto
pelo carácter sucessória que comporta como pelas constantes referências aos
mesmos sentires, ideias e motivos. Embora, repito, seja um autêntico espelho
que reflecte a outra face da temática central do poeta. Onde antes pairava a
melancolia, tem agora a alegria o seu lugar; e a morte, nuvem pendente em
ameaçador assalto, cede o seu lugar à vida, um digno alvo de louvor.
Assim, Eugénio espraia o seu sentir pela brandura das
emoções que exalta e pelo nítido sentido de eternidade, tão inexoravelmente
inerente à condição do amante. O poema que abre a obra, e que ostenta o mesmo
nome que esta, é um fiel exemplo desse subliminar desejo de infinito e de
luminosa plenitude. A inscrição que acompanha o trabalho dá, inclusive, o tom
da melodia que se apronta a ser reproduzida. Invocando uma frase de
Shakespeare, permite desde logo antever a intenção deste conjunto poético.
No entanto, que não se aceite a ideia, por falsa ser, que a
melancolia está completamente ausente desta obra. Muito pelo contrário. É,
inclusive, o outro lado da moeda cuja superfície o poeta encara. Ou, se preferir
o estimado leitor, o «lado oculto» de toda a coisa cantada e exaltada. A sua
presença é, assim, indirecta. Mas não se encontra totalmente extinta. Também a
eternidade desejada se apoia numa base naturalmente dúbia, pois, sob o ponto de
vista material, ela é efémera. E essa ânsia, essa certeza tão dolorosa, nunca
cessará de latejar em seu âmago – como uma crua evidência, que não se nega nem
de seu jugo se escapa. Mesmo assim, o autor parece sempre convicto de seu
propósito e não abdica de valorizar o investimento de vida que a cada momento
se empreende.
Existe, de forma algo vaga, uma ideia, em traços gerais, de
busca amorosa e o natural anseio pelo encontro. É uma voz que de longe o chama
para seus braços. Nesta toada, os poemas irão se desenrolar através do próprio
despertar do amor, do seu aproveitamento e da consequente despedida. Assim,
denota-se uma clara evolução dos acontecimentos, uma espécie de narrativa
poética em crescendo, detentora da sua própria história e demais incidências. É
ao longo da mesma que o leitor poderá colher o aroma das mais belas flores que
o poeta plantará, sentido o carácter luminoso e eterno de cada curva, de cada
passo, de cada brisa.
Em conclusão, um dos principais louvores desta publicação
conjunta, como creio já se ter tornado claro, é a nítida harmonização de dois
princípios tão antagónicos como a sóbria melancolia e a serena alegria. Ou não
fossem eles elementos tão fulcrais da temática deste autor. Tanto, que um nem
poderia existir sem o outro. Ao abordá-los, em separado, é impossível não ficar
com a sensação de que o retrato de Eugénio não se completa, não se assume
nítido, correcto ou compreendido na mais potencial da sua globalidade. É claro
que, ao navegar por seu mundo, o leitor deparar-se-á com um estilo de escrita
bem característico, também aqui, como não poderia deixar de ser, bastante
presente: a acessibilidade das palavras escolhias e as intrincadas imagens
poéticas, sempre impregnadas pelo mais vívido dos sentires. Olhar um poema de
Eugénio é, definitivamente, contemplar a superfície translúcida de um riacho
tranquilo: transparente, brando, luminoso. Apesar disso, não se encontram
vestígios claros de transcendentalismos, antes do movimento simbolista. A
poesia não parece inclinada para alma, mas sim – e sempre – para o corpo.
É num estranho equilíbrio, imensamente belo, que se esboçam
e se traçam as linhas que adornam os poemas de Eugénio, um mestre a eternizar o
momento, permanentemente fiéis a um estilo e forma que se poderá afirmar como
sendo a sua raiz. Tudo com a chancela, nobilíssima, da ímpar arte que acompanha
as poesias mais supremas e conseguidas, aquelas que são o digno ofício dos mais
iluminados poetas.
Em 2005, no Porto, registar-se-ia o óbito de Eugénio de
Andrade, aos oitenta e dois anos de idade. Mas… alguma vez os Poetas morrem?
EROS
Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
– como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?
(Eugénio de Andrade, in Mar de Setembro)
Ligações a esta post:
>>> Leia sobre o poeta Eugénio de Andrade aqui.
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