Cada homem é uma raça, de Mia Couto
Enfim, tantos anos depois que o escritor moçambicano circula
pelo Brasil, não só fisicamente, mas pela sua obra, já há muito editada pela
Companhia das Letras, é preenchia uma lacuna na sua produção literária por aqui. É que, mesmo não sendo um leitor assíduo da obra de Mia
Couto e mesmo fazendo ressalvas para alguns de seus trabalhos, sobretudo o
romance último publicado por aqui, A confissão da leoa, tenho acompanhado de
perto o crescimento da rede de leitores ou simplesmente admiradores de seu
trabalho. É um feito raro para um escritor africano. Há muitos que circulam por
aqui e que têm uma expressão literária além da do autor de Terra sonâmbula, mas
que não têm a mesma aceitabilidade. Falo isso pensando em nomes como Pepetela e
José Craveirinha, dois que trago na minha lista de leituras.
Mia Couto, entretanto, terá escolhido uma linha tênue entre
a forma estética e a capacidade de se aproximar de questões um tanto mais corriqueiras
do dia-a-dia comum. Noutras palavras, seu intuito tem se concentrado em do seu universo particular, aquele que diz respeito às muitas Áfricas presentes
em Moçambique e fazê-lo universal. Não se propõe nem a uma renovação estética
nas literaturas de língua portuguesa porque já tem no uso diferenciado da
língua essa condição e nem se dedica exclusivamente ao comezinho, que se assim
fosse corria o risco de descambar em definitivo para territórios mal pisados pela
literatura barata, aquela que é tudo, menos arte.
Agora, uma verdade há que ser dita, talvez Mia seja mesmo o escritor
de um romance: Terra sonâmbula e nada mais. Mas, como contista ele é exemplar e
talvez os outros romances seus seja apenas isto, contos que se desenvolveram demais
e se perderam. Prova está num livro que comentei por aqui numa série a que denominei
“Miacontear” e que era a leitura passo a passo de O fio das missangas (os posts estão todos aqui). E agora
se soma a mais um caso aos olhos do leitor brasileiro com a publicação desse Cada
homem é uma raça.
Editado em Portugal já no início da década de 1990, aí se reúne
ainda o vigor da sua escrita e de sua invenção. Por isso, ser também esta edição uma vez publicada por aqui um preencher de lacuna. Especializado em condensar almas humanas sob
forma de literatura, o contista encontra-se com uma nova série de indivíduos e
faz de suas histórias de vida uma poética multiperspectiva do sujeito e suas
feições na contemporaneidade, que talvez essa seja a maior inquietação do escritor
contemporâneo.
Ao todo são 11 textos: “A Rosa Caramela”, “O apocalipse
privado do Tio Geguê”, “Rosalinda, a nenhuma”, “O embondeiro que sonhava pássaros”,
“A princesa russa”, “O pescador cego”, “O ex-futuro padre e sua pré-viúva”, “Mulher
de mim”, “A lenda da noiva e do forasteiro”, “Sidney Poitier na barbearia de
Firipe Beruberu” e “Os mastros de Paralém”. Essa denominação já deixa
vislumbrar para o leitor a boa forma de reinventar a língua pela aproximação
entre a prosa e a poesia, responsável ainda por uma ‘melodização’ muito própria
da narrativa que a reaproxima do gesto primitivo das narrativas orais.
Um exemplo desse trabalho são os recortes a seguir, feitos
aleatoriamente no livro:
Nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas...
Fez-se irmã das pedras, de tanto nelas se encostar (A Rosa Caramela);
Fixei o céu, procurando Deus. Mas eu não tinha vistas para
tão longe. (O apocalipse privado do Tio Geguê)
... desde que enviuvou, ela desentreteu, esquecida de ser.
(Rosalinda, a nenhuma)
Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será
bastante para lhe salvar do escuro. (O embondeiro que sonhava pássaros)
...a fome começou a fazer ninho em sua barriga. Decidiu lançar
a linha, já sem esperança: o anzol carecia de isco. E ninguém conhece peixe que
se suicide por gosto, mordendo anzol vazio. (O pescador cego)
…o mundo é grande, mais completo que coisa cheia. O homem se
acredita muito enorme, quase tocando os céus. Mas onde ele chega é só por
empréstimo de tamanho, sua altura se fazendo por dívida com a altitude (Os
mastros do Paralém)
Todo o deslumbramento que está na superfície daquele O fio
das missangas se verifica neste livro: estão aí os seres postos à margem de
tudo, com seus dramas aparentemente fora de órbita, quase a beira de tragédias;
as situações de submissão da mulher num mundo cujo interesse está sempre em
escravizar-lhe o corpo e a existência, como é caso em “A Rosa Caramela”, em que
o leitor fica em frente aos dissabores de uma mulher corcunda que enlouqueceu
depois de ter sido abandonada no dia do casamento, ou ainda “A princesa russa”,
em que a mulher distante de seu país de origem é obrigada a aturar as
hostilidades do marido; também está em cena, o caráter mágico e quase
fantástico, como nos “A lenda da noiva e do forasteiro” e “O embondeiro que
sonhava pássaros”; ou ainda a verve político-social em “O apocalipse privado do
tio Geguê”, narrativa situada num tempo posterior ao da luta pela independência e que fala da terra moçambicana a partir de um objeto insignificante, uma bota
encontrada pelo tio do narrador, ou “Os mastros de Paralém”, que também situado nesse
mesmo instante histórico põe o leitor em contato com os diversos sentimentos e situações
do longo processo que foi a retomada de Moçambique da mão dos colonizadores: a
dor, o pesadelo, a injustiça, a fome, a miséria, a escravidão, uma leva de
memórias e sentimentos rigorosamente retrabalhados pelo narrador.
A pluralidade do tecido de Cada homem é uma raça – apesar de
reiterar lugares já em processo de decantação na obra do contista – faz esse
livro ainda assim único na tábua bibliográfica de Mia Couto. Precisamente
porque, está uma tentativa de perquirir a construção de um lugar que não é
apenas o dos primórdios de Moçambique, é uma exploração tateante da própria gênese
do mundo interceptada pela natureza humana e sua relação umbilical com o lugar
de pertença e o confronto com as refacções dessa relação e dos lugares. Está,
portanto, localizado entre um dos títulos fundamentais da produção literária do contista moçambicano indispensáveis à leitura.
Comentários