A resistência suave do algodão em rama: autoria e crítica nos “Relatórios” de Graciliano Ramos
Por Vera Romariz*
Fac-símile dos dois relatórios escritos por Graciliano Ramos no período em que foi prefeito em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas. Imagem do Blog da Boitempo Editorial. |
Os dois relatórios do escritor Graciliano Ramos, publicados
no livro Viventes das Alagoas (1962),
foram produzidos entre 1929 e 1930, traindo um diálogo entre o texto
informativo e o literário, com discreto hibridismo de discursos. Emerge dessas
poucas páginas o relato de sua vida pública, fugaz mas significativa, com traços
esparsos de uma crítica da realidade social que jamais abandonou; e os vetores críticos
de seu texto são o humor e uma subjetividade ácida, anti-institucional, incomuns
em documento de convenção tão normatizada pelas instituições, cuja tradição cultural
o modela.
Relatar supõe construir uma “narração ou descrição verbal ou
escrita, ordenada e mais ou menos minuciosa do que se viu, ouviu e observou”,
segundo o velho dicionário de Aurélio Buarque. Nesse sentido, a natureza do relatório
privilegia o documental e aproxima, no maior grau possível, palavra e coisa
representada, apesar de tal esforço se afigurar infrutífero no texto ficcional,
que reinventa sentidos e dá de costas para essa documentação precisa dos fatos.
A autoria de Graciliano Ramos despregou-se da rigidez do
relado e encontrou brechas saudáveis que tornaram famosos os relatórios de sua gestão
municipal; se neles o escritor atende ao poder do Estado (o que se infere do destinatário
explícito do relatório, (“Exmo. Sr. Governador”), sua natureza autoral
consciente inclui o outro social, sempre. E é a acidez crítica e o humor do
relado que condizem o texto, dividido entre a convenção (coletiva) e o estilo
individual, modelados pela tradição realista, que impõe visibilidade ao
discurso do autor, como propõe Philippe Hamon (1984). No humor dos relatórios,
detecta-se uma atitude crítica anti-institucional que expõe as falhas e vícios
dos poderosos, como o da propaganda excessiva dos atos realizados; assim,
descreve em tom jocoso o vício de redigirem telegramas em excesso (“porque se
deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela –
um telegrama”). De forma sutil, Graciliano também critica a velha retórica,
como o fez em Caetés, quando abomina a velha gramática e a verborragia, vícios que
reiteram uma tradição linguística autoritária de assimetria social simbólica.
O autor produz um parágrafo na abertura do primeiro relatório,
em 1929, em que se anuncia uma subjetividade crítica, autoral; nele, afirma,
referindo-se aos trabalhos executados em sua gestão, que “Não foram muitos, que
os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao
observador afastado, que desconheça as condições em que o município se achava,
muito me custaram”. Na inversão estilística sutil, o autor atribui caráter de
pessoa humana a suas obras (“insensíveis”), utilizando a primeira pessoa do singular
(“muito me custaram”), com uma liberdade estilística materializada já no
primeiro subtítulo do relatório (“Começos”); neste, para descrever a teia de
poder que enreda o município, brinca de forma autoirônica com o termo “prefeito”
(“Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: o cobrador de impostos, o
Comandante do Destacamento, os soldados”).
Sua subjetividade crítica, que não se confunde com
pessoalidade lírica (à moda romântica), transgride a forma impessoal do relato,
no sentido de desvelar faces inusitadas dos objetos, descritos
(representados?) com um tratamento irônico
incomum. Assim, ainda nesse primeiro relatório, referindo-se às dificuldades
para instaurar “alguma ordem” no município afirma: “(...) Lutei com tenacidade
e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência
mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada
de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra
melhor do que todos nós”. No uso da metáfora “algodão”, e dos epítetos “suave”
e “mole”, o autor representa a resistência do meio conservador ao novo; sua
palavra de literato, então, mescla à do homem público, e o uso do léxico
deslocado surpreende o leitor e ilumina a autoria e o ponto de vista,
categorias silenciadas em documentos similares.
No segundo relatório, de 1930, reitera-se o estilo acima
exemplificado, e retorna a preocupação social inclusiva; nesta, surge a alusão ao
êxodo nordestino, como dolorosa consequência da seca, levando-o a afirmar que “A
população minguada, ou emigrava para o sul do país, ou se fixava nos municípios
vizinhos. (...) Vegetam em lastimável abandono alguns agregados humanos”. Nos textos,
a necessidade documental, detectada em romances de temática social, como os de
30, alia-se ao tom crítico-criativo do autor, gerando um produtivo hibridismo
de documento da realidade (“a população emigrava para o sul”) e representação (“vegetavam”,
“agregados humanos”), o que gerou grandes romances ocidentais como Germinal, de Emile Zola ou o próprio São Bernardo, de Graciliano.
A hibridização das formas discursivas, consolidada no século
XX, contribui para compor no século XIX uma face transgressora do Romantismo,
que desarticulou a estrutura da convenção dos gêneros literários clássicos,
abrindo espaço para uma reformulação no modo de dizer e na própria relação forma/conteúdo.
Essa cristalização dos gêneros sempre inquietou grandes autores, daí Goethe, o
escritor alemão, dizer que isto de gênero não é cela, isolada e fechada, mas
uma espécie de compartimento aberto a outras (importantes) transgressões. Graciliano
acompanhou a evolução formal dos gêneros, apreendendo a rebeldia romântica e
utilizando-a em sua consistente tradição realista; daí ter feito esses
saborosos relatórios, misto de discursos instituído e crítica às mesmas instituições
que modelaram as palavras oficiais.
As regras da redação oficial mudam muito lentamente, porque
seu objetivo cristalizado é a informação clara, objetiva, precisa, que não dá margem
à leitura mais transversal e oblíqua, terreno dos criadores; mas o discurso literário
é algodão macio, bicho manhoso. Nele há sempre frestas onde se pode entrar até
a arca dourada de uma multiplicidade de sentidos, o que fez o prefeito Graciliano
utilizar, como escritor, a liberdade compositiva do avanço do gênero, para
fincar um conteúdo social com forma híbrida. Escrevendo relatórios com os conteúdos
ideológicos que permearam toda sua obra, quer a memorialística, quer a ficção,
o autor rompe estereótipos linguísticos, jogando com o texto (e com o leitor);
nesse ludismo produtivo, sua palavra ora remete ao conteúdos sociais que
assinalaram sua obra, painel de uma gente deslocada e invisível os olhos do
Estado. Surge, então, mesclado com a sociabilidade, o estilo individual do
velho Graça, cm um tom que parece abominar a velha retórica patética e
sentimental, inscrevendo-se em uma longa tradição realista, em que a
legibilidade é arte preciosa, o que não quer dizer clareza estereotipada,
repleta de clichês que pouco acrescentam aos textos. Sua autoria dribla a
suposta imparcialidade dos documentos oficiais, e instaura, “como bílis”, o
ponto de vista, a perspectiva da autoria individual.
Em 1947, o escritor paraibano Allyrio Meira Wanderley, com o
pseudônimo de Monte Brito, escreveu em O
Jornal, do Rio de Janeiro, que na ficção de Graciliano a forma está sempre
vinculada à matéria e que a primeira “(...) cai, rígida e certeira, carregada
de veneno e maciez, sobre a sociedade que condenou e retrata”. E o que me vem à
mente quando releio seus relatórios, documento de criatividade modelada com a
resistência suave, de algodão em rama, de alguém que conta e sabe contar nossas
histórias.
Notas:
Viventes das Alagoas foi publicado em 1962 e reúne além dos “Relatórios" pequenos textos ficcionais, crônicas e ensaios produzidos para a imprensa a partir de 1937.
A produção do gênero crônicas foi ampla na bibliografia de Graciliano. Além de Viventes das Alagoas é conhecido do público brasileiro Viagem, de 1964, Linhas tortas, de 1962, e ano passado Thiago Mia Salla, pesquisador da obra do escritor alagoano reuniu além das crônicas uma série de textos publicados na imprensa na sua juventude: Garranchos. Falamos sobre esse livro aqui.
Abaixo deixamos um catálogo com um texto do Prof. Dênis de Moraes, autor de O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, que faz uma visita ao lado prefeito do escritor. Inteira o catálogo a reprodução dos dois relatórios de Graciliano Ramos publicados no Diário Oficial do Estado de Alagoas.
* É de Maceió, Alagoas. Escritora e professora aposentada da
Universidade Federal de Alagoas. Tem vários títulos publicados. O texto “A resistência suave do algodão em rama: autoria e crítica nos Relatórios de Graciliano Ramos” foi publicado inicialmente na revista Graciliano. Ano 1, n. 1, set. 2008.
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