Samuel Beckett
Pouco a pouco vamos deixando o século XX e, embora ainda o tenhamos
vendo com certa paixão, já é possível entendê-lo como uma unidade que começou e
terminou. Podemos imaginá-lo como este século irmão será visto dentro de várias
gerações, dentro de um punhado de séculos, por exemplo. E quando se formam as
listas essenciais de datas, descobertas, lutas, construções e autores, apostamos
que na última categoria estará Samuel Beckett, o magro e elegante escritor
irlandês cuja vida e obra transcorreram em pleno século XX. Nasceu em 1906 no
povoado de Foxrock de Irlanda (um subúrbio de Dublin) e morreu em Paris no
último mês de 1989.
Beckett é muito mais acessível do que parece à primeira
vista. Se apenas um o conhece por uma boa quantidade de suas obras teatrais,
como Esperando Godot e Dias Felizes, é possível classificá-lo
como um autor avant garde, ou – para usar
uma frase um pouco mais detestável – um escritor experimental. Beckett, em sua
vida e obra, foi uma pessoa simples, direta e honesta. Nunca fez algo para
ganhar um afeto ou para conseguir um lugar no mundo literário – embora se lhe
interessava a glória literária. Sua vida não foi exatamente um sacerdócio –
tinha muitos amigos, gostava da bebida, das mulheres, tinha um sentido de humor
negro e escatológico – mas se foi marcada por um compromisso quase sagrado para
buscar expressar em palavras a realidade de sua existência. Para ver que se
podia fazer com a linguagem, com a literatura, para expressar com máxima honestidade
o dilema humano. E o dilema humano é, simplesmente: que fazemos aqui? Como passaremos
os dias?
Se formos à teoria de Harold Bloom da angústia da
influência, que diz – mais ou menos – que o problema mais grave para um autor
em seu princípio é superar as realizações de seus antecessores imediatos, o obstáculo
maior para Beckett foi James Joyce. Não será desnecessário dizer: Joyce foi um
titã que mudou a literatura universal. Ulisses
rompeu tudo. Pode ser que ninguém tenha escrito uma novela depois. Beckett e Joyce
eram irlandeses. Para fazer as coisas mais complicadas, Beckett, aos 22 anos
conheceu pessoalmente Joyce. Trabalhou com ele em Paris, em 1928, quando havia
conseguido uma bolsa para ser professor na École Normale Supérieure. Já foi
dito que Beckett era secretário de Joyce, mas isso é mentira. Joyce admirava Beckett.
É verdade que Joyce o recretou para conseguir prosélitos para sua nova obra, Finnegans Wake (nessa ocasião chamada A Work in Progress), mas Beckett, por
sua parte, admirava tanto Joyce que usava sapatos demasiadamente chiques para tê-lo
de igual para igual. Para complicar as coisas mais ainda, a filha de Joyce se
apaixonou por Beckett (sem reciprocidade), o que terminou causando uma ruptura temporária
entre os dois.
Mas o fundamental é a literatura. Anos depois, Beckett se
deu conta, numa revelação que teve já próximo dos 40 anos, de que se a realização
de Joyce foi agregar e agregar-lhe realidade ao mundo através da linguagem, o
caminho que ele teria que tomar era o oposto: o de subtrair.
Disse Beckett: “Me dei conta de que Joyce havia ido a mais
lugares que se pode enquanto a conhecer sua materialidade. Sempre estava
agregando. Só faz falta ver seus rascunhos para adverti-lo. Me dei conta de que
meu caminho era via o empobrecimento, na falta de conhecimento e em tomar, em
subtrair em vez de somar. Quando conheci Joyce pela primeira vez não era minha intenção
ser escritor. Isso só veio depois, quando me dei conta que não servia para
ensinar, para ser professor. Mas recordo haver falado da recordação heroica de
Joyce. Lhe tinha muita admiração. Isso é o que me recordo: foi épico, heroico. Não
podia seguir o mesmo caminho.”
Entre suas renúncias esteve o abandono de sua língua
materna. Trocou o inglês para o francês. Isso lhe permitiria – como sentia –
escrever de uma maneira mais pura, livro de automatismos estilísticos.
Beckett nasceu numa família protestante, não rica, mais de situação
cômoda, das periferias de Dublin. Estudou em bons colégios onde se destacava
como aluno e atleta. Gostava de jogar xadrez, jogava críquete e golfe. Também participava
em corridas de MotoCross. Em sua velhice, quando não podia conciliar o sonho,
jogava em sua imaginação as partidas de golfe de sua adolescência. Sempre seguiu
os esportes pela televisão. Foi um brilhante estudante de letras no Trinity
College de Dublin, com um talento esquisito para os idiomas. Lia voraz e
criticamente todas as tradições. Amava seu pai e com sua mãe teve uma relação complicadíssima
o que lhe levou a vários anos de psicanálise. O curioso é que teve que emigrar para Londres para
o tratamento já que nos anos 20 a psicanálise era ilegal na Irlanda.
Entre as namoradas de Beckett, em sua adolescência, estava
uma prima-irmã e também uma das herdeiras da fortuna Guggenheim. Ela, Peggy,
lhe dizia Oblomov, pela personagem da
novela homônima de Goncharov que passava os dias perdida numa cadeira. Como muitos
artistas irlandeses dessa época, emigrou, como dissemos antes. Seu destino foi
Paris. Durante a Segunda Guerra Mundial participou na Resistência pondo sua
vida em risco enquanto trabalhava para um grupo que decifrava e recodificava
mensagens secretas.
Uma das grandes riquezas de Beckett foi sua companheira de
vida, Suzanne Deschevaux-Dumesnil, seis anos mais velha que ele. A conheceu
jogando tênis, numa partida de dois jogadores mistos, no princípio dos anos
1920, mas uniram-se depois. Como Beckett, Suzanne era austera, relutante em relação
à fama. Em seus tortuosos intentos de conseguir uma editora para suas primeiras
obras, Suzanne foi fundamental. Nunca deixou de crer nele. E embora ele não fosse
totalmente fieis em termos sexuais, estiveram juntos sempre e até o final da
vida. Ela morreu no dia 17 de julho de 1989; Beckett viveu pouco depois de sua
perda. Morreu no dia 22 de dezembro de 1989. Dizem que muitos dos diálogos “absurdos”
das obras teatrais de Beckett são quase transcrições das conversas que tinha
com sua esposa (se casaram em 1963, e viveram juntos 50 anos, incluindo os anos
de Resistência nos campos franceses durante a Segunda Guerra Mundial).
A fama de Beckett foi uma convicção que veio em duas ocasiões:
ao estrear Esperando Godot, em 1953,
e ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1969.
A literatura, o desejo de ser parte da literatura, de
contribuir com seu crescimento, é algo fechado: é tão privado escrever e é tão privado
ler... Mas os autores, inevitavelmente, são figuras públicas. Beckett morreu
num hospital digno e limpo, bem atendido, mas extremamente austero. Era um
homem rico. Não era mesquinho. Não necessitava de nada. Em sua cabeça cabia um
mundo.
* Tradução livre de texto publicado no dia 14 de junho de 2013 na Revista Ñ.
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