Pedalando com Molière, de Philippe Le Guay
Um filme-ensaio. Não no sentido direto de ensaiar sobre alguma
coisa, mas pela presença daquilo que antecede a preparação de um ator. Essa poderia
ser uma das razões para resumir o filme de Philippe Le Guay. Mas não é
suficiente, nem convincente. Há mais a se pensar sobre sua narrativa,
necessariamente tomada de jogos intertextuais diretos com a obra de Molière. Também
não é suficiente essa interpenetração de discursos – o do cinema invadido pelo
de seu gênero precursor, o teatro. Há o próprio fantasma do dramaturgo, ator e
encenador, considerado um dos mestres da comédia satírica. Molière usou a sua
obra para criticar os costumes da época; é considerado o fundador indireto do gênero
na França, depois de ir na direção contrária das produções da seu tempo sempre pautadas ainda na imitação das obras gregas.
Essa simples observação biográfica sobre a peça-chave do
título, Pedalando com Molière – um tanto
distante do título francês, Alceste à
bicyclette, talvez porque o público brasileiro de fato não tenha
conhecimento assim tão amplo da personagem Alceste d’O misantropo e o nome de seu autor seja mais popular por aqui – é suficiente
para uma leitura sobre o filme. Suficiente, mas ainda não uma das razões para resumir o filme. Em cena, está Serge Tanneur que, sem motivos
aparentes (estes vão sendo revelados ao longo da narrativa) abandona a
prestigiosa carreira de ator que vinha construindo, até reencontrar anos mais
tarde o amigo Gauthier Valence, um ator de seriados para televisão, reconhecidamente
bajulado pelo público, e que vem lhe propor a atuação numa adaptação da peça de
Molière para o teatro. Entre a recusa ou não do convite, daí então o filme vai
se construindo como uma queda de braço entre os dois. No centro da disputa quem
interpretará a figura de Alceste.
A primeira vez que O
misantropo foi encenado foi em 1666. E a peça não teve o sucesso devido. Nem
é um dos trabalhos de Molière mais reconhecidos que nesse rol inclui títulos como Tartufo e Don Juan, por exemplo. No texto clássico, uma personagem que se recusa a
integrar-se ao mundo por defender sua retidão e integridade e considerar fora
isso tudo uma hipocrisia. É este Alceste que, além de tudo nutre uma paixão por
Celimene, a personagem que põe em xeque suas fortes características. Todo esse
trajeto está impresso na personalidade e no drama de Serge.
A personagem vivida por Fabrice Luchini é única na carreira
do ator. E diga-se é o grande centro da trama – não apenas pela forma como
encarna as falas de Molière nos vários ensaios que trava com o amigo, mas pelo
desempenho de seu próprio papel no filme. E apesar da trama do texto clássico
servir para iluminar a função dos dois atores e dos dramas vividos por eles,
por essa relação que apontamos acima, não é necessário conhecer a obra do
dramaturgo francês para ter uma relação de empatia com o filme. Isso porque
prevalece o que dissemos: a grande atuação que os atores têm em cena e a representação da própria relação de amizade entre os dois, que por fim, é esta
a grande sacada do filme: investir no cenário emocional dessa relação posta entre altos e baixos. Como terá ressaltado o próprio diretor Philipppe Le Guay, a
amizade é algo que tem vida e na maioria das vezes pode ser perturbadora, pode
ser destruidora, e é de fato entre esses dois lugares que as personagens
oscilam.
A expressividade de Fabrice com a personagem ganha ainda
mais realismo quando ficamos sabendo que o ator de fato tem sua paixão pelo texto de Molière e o estudou por cerca de 30 anos; já sabia de cor o texto, antes mesmo do filme. E como Serge, sempre
teve interesse em atuar num trabalho que tivesse cujo
centro fosse a obra de Molière. Numa entrevista para a revista Veja Le Guay comenta da aproximação que teve com Luchini, da
estadia com o ator na sua casa na Île de Ré, cenário do filme, e das cenas que
vivenciou andando de bicicleta a recitar as falas de O misantropo tal qual acontece no filme.
É, por fim, uma aula de interpretação. Um deleite poder ouvir o texto falado na própria língua de Molière com ressalva sobre tons, entoação e postura de voz. Razões suficientes para que este seja um dos filmes a integrarem o rol de qualquer filmografia francesa contemporânea.
É, por fim, uma aula de interpretação. Um deleite poder ouvir o texto falado na própria língua de Molière com ressalva sobre tons, entoação e postura de voz. Razões suficientes para que este seja um dos filmes a integrarem o rol de qualquer filmografia francesa contemporânea.
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