Crônica de um leitor de O jogo da amarelinha (1)
por Juan Cruz Ruíz
Julio Cortázar na Ponte Neuf sobre o Sena, em Paris. Foto: Antonio Gálvez |
Estive escutando em Madrid uma ilustre leitora de O jogo da amarelinha, a professora
cubana Ana María Hernández del Castillo, que desde há muito tempo vive e
trabalha em Nova York. Ela disse, nesse ato que foi celebrado no Centro de Arte
Moderna, que o livro de Cortázar salvou-lhe a vida quando o leu. Todos os
leitores de O jogo da amarelinha, e
eu sou um deles, temos uma circunstância que nos une ao livro, que nos une
também a Cortázar como tivéssemos o conhecido, como se devêssemos a ele uma aspiração
ou uma esperança. Naquela sexta-feira era a primeira vez que escutava alguém
dizer que este livro lhe havia salvado a vida. Não me estranhou.
Até então, a cada Ano, Ana María, uma mulher razoavelmente
jovem e ativa, que leva em seu rosto e seu olhar vislumbres atlânticos de sua ascendência
canária, havia pensado em suicidar-se, e a cada ano adiava essa decisão. Até que
leu o mais famoso livro de Julio Cortázar e este lhe devolveu o desejo de
viver. O jogo da amarelinha tem
poderes especiais; não apenas um livro, ou um pensamento, ou uma música; é um
livro que lhe tira do poço ou lhe mete nele para que saibas que do poço podes
sair; é um livro sobre a angústia, e sobre a angústia do outro, mas também é
uma nave para que navegues daí até ao humor e até à vida. Ana María Hernández desfrutou
dessa experiência quando leu O jogo da
amarelinha. E aí está, fez de contar sua experiência.
Logo, por intermédio de Juan Goytisolo, que era seu
professor na Universidade de Nova York, Ana María fez contato com o escritor
argentino, que na época vivia em Paris. Teve oportunidade de conhecê-lo em
1972. Tornaram-se amigos. Ela sabe tudo sobre Cortázar, como se ainda o visse
caminhar por Montparnasse.
O resultado de sua correspondência (ao das cartas de Julio, não
das suas) está nos tomos 4 e 5 da fabulosa coleção organizada ela viúva de Cortázar,
Aurora Bernárdez, e o professor Carles Álvarez, e que contém uma documentação exaustiva
sobre a personalidade literária e humana do autor de O jogo da amarelinha.
Ana María contou que quando estive em Paris com Cortázar, um
homem ocupadíssimo então como mostra precisamente essa correspondência, lhe deu
seu tempo e sua conversa e juntos empreenderam um diálogo que para ela não foi
terminado. Neste ato em Madrid ela apresentava um livro singular, Circe La Maga. La hechicera en la obra de
Cortázar, em que aborda, deste ponto de vista da psicanálise jungiana, a consequência
que teve em Cortázar sua audaz leitura de John Keats, sobre ele havia escrito
um livro que permaneceu inédito até à morte de Julio e que tive a honra de
reeditar na Alfaguara em meado dos anos 90. Cortázar morreu em fevereiro de
1984. A obra de Ana María Hernández del Castillo foi reeditada agora pelo
Centro de Arte Moderna, na sua coleção de livros de bibliófilo, e precisamente
para a apresentação desse livro estávamos escutando as confissões da autora de Circe La Maga, ao lado de outra leitora
apaixonada por O jogo da amarelinha,
a professora Mariángeles Fernández.
Claro que, o primeiro que me impressionou, e o que já me
entregou em suas palavras autobiográficas sobre o brilho que para ela foi o
livro de Cortázar, foi aquela confissão, O
jogo da amarelinha havia lhe salvado. Cada leitor é um universo em relação ao
mesmo livro; os livros tem mãos que cada um toma como ele lhe parece, e a memória
devolve logo a experiência da leitura com o vigor ou a melancolia que há empregado
nessa experiência. E O jogo da amarelinha
é, para muitos e para mim também, um caso muito especial que ainda bate, quase
quarenta anos depois de sua leitura, como se, de certo modo, houvesse mudado a
vida, pois já me havia salvado, de certo modo, Três tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante. Quando comecei o
livro de Cortázar, na velha edição que conservei até que o vento de outras a
levou de mim, me pareceu que aquele pedaço de vida que tinha mãos devia
permanecer intacto na minha memória e no quarto do Colégio Mayor San Fernando
de La Laguna, assim que pedi à senhora que gerenciava a moradia que movesse
nada, que deixasse esse lugar intacto até que eu acabasse de ler o livro.
Logo conheci Cortázar, em Amsterdã, casualmente, com meu
amigo Carlos A. Schwartz, também em 1972, no ano em que Ana María o havia
encontrado. Em Paris procurei por ele e o encontrei graças ao azar extraordinário
dos telefones, e logo o reencontrei em Madrid quando acabava de publicar sua
obra sobre Nicarágua, até que fui me tornar seu entusiasmado editor nos anos
90, quando na Espanha dominada em desdém pelo boom decidimos, meus companheiros
da Alfaguara na América e eu mesmo na Espanha,
lançar aquela campanha que chamou “Há quer ler Cortázar” e que levava como
apoio o subtítulo “Queremos tanto a Julio”.
Dessa experiência editorial surgida da admiração comum pelo
autor de O jogo da amarelinha nasceu
a iniciativa de publicar a coleção de contos completos latino-americanos que se
iniciou com as obras de Cortázar e de Juan Carlos Onetti. Logo conhecemos essas
cartas que primeiro Aurora Bernárdez e logo Aurora com Carles foram
selecionando para que soubéssemos o que dizia Julio quando era tão somente Julio
e se comunicava com leitores como Ana María, dando-lhes a generosidade do tempo
e da conversa.
Assustou-me ouvir Ana María dizendo que O jogo da amarelinha lhe havia salvado a vida, mas não me
estranhou. Os livros têm mãos, te levam para cima. Logo eu pensei diante desse
papel cibernético em que escrevo rememorando minha própria leitura do livro mais
famoso de Cortázar, que a mim também me salvou O jogo da amarelinha, ainda não sei de que, porque sigo lendo-lhe,
mas se sei que minha gratidão por esse livro é a que geralmente se sente quando
um bom amigo te devolve a vida ou lhe cumprimenta.
* Este é o primeiro texto de uma série em homenagem aos 50 anos de Jogo da amarelinha, de Julio Cortázar celebrado a partir de hoje, 28 de junho, data em que foi publicada a primeira edição do livro.
Comentários