450 anos da lírica de Luís de Camões
Amor é fogo que arde
sem se ver;
É ferida que dói e não
se sente;
É um contentamento
descontente;
É dor que desatina sem
doer;
Este talvez seja os versos mais conhecidos e citados de cor
pelos usuários da língua portuguesa. São únicos na poesia lírica de Camões,
únicos no cenário universal da poesia, únicos na forma como expressa o
sentimento amoroso – esse que é o centro temático da poesia do tipo e também um
dos temas mais perseguidos nas literaturas. Estes versos são também
representativos de uma produção literária menos conhecida do poeta d’Os lusíadas. Sim, porque ao se falar em Camões, é evidente
que antes desses versos poderão vir os versos iniciais da epopeia ou a citação do
texto como representativo de sua literatura.
O primeiro texto dos que integram essa produção menos
conhecida do poeta, “Ode ao Conde de Redondo”, cumpre
neste 2013, 450 anos de sua publicação. Trata-se, como expressa o título, de uma ode dedicada ao Conde
de Redondo, pedindo a proteção para um livro de um amigo. Numa época em que a
publicação estava diretamente atrelada aos poderes da Coroa e da Igreja, na
representação do Tribunal do Santo Ofício, que funcionava como um censor pelo
qual todos os textos deviam se submeter a uma triagem antes, o rogo de alguém já
semiquisto por estas instituições talvez fosse uma tentativa acertada para concessão
do privilégio. E no tempo em que foi escrita, Luís de Camões já havia publicado
Os lusíadas – obra que traz à
abertura o registro de adoração comum às instâncias superiores impresso nas
dedicatórias.
É preciso que se faça um parêntesis para dizer que não terá
sido de hoje que a censura é burra; é que o clássico do poeta português
sobreviveu às interpretações do Tribunal que não atentou para o caráter erótico
de algumas passagens do poema e nem para as subversões de cunho religioso aí introduzidas. Também a Coroa não atentou para as críticas não tão veladas do aedo
à sua política ambicionista. Mas, voltemos
à ode.
O poema integra o conjunto de paratextos dos Coloquios dos simples, e drogas he cousas
medicinais da India, de Garcia de Orta que foi impresso, em Goa, em 1563,
por Ioannes de Endem, um impressor alemão que havia pouco tempo instalara o seu
prelo na Índia portuguesa. A fama do Conde de Redondo, então designação dada ao
vice-rei da Índia, D. Francisco Coutinho era a de incentivador da ciência
moderna e o periódico era uma das ferramentas desse interesse. Este terá sido
um dos três únicos poemas líricos de Camões publicados ainda em vida. Além da
ode, uma elegia e um soneto impressos como partes integrantes de um periódico lisboeta,
em 1576, sob custódia de Pero de Magalhães de Gândavo, Historia da prouincia sancta Cruz [a que vulgarmete chamamos Brasil].
De Pero Magalhães pouco se sabe: versado em latim, foi
professor na região entre o Douro e o Minho e teve contato com obras não só de
Camões, mas de Sá de Miranda, João de Barros e André Resende. Foi autor de uma
das primeiras gramáticas de língua portuguesa e de um tratado acerca da província
brasileira, para onde foi mandado logo depois dos descobrimentos a mando de Dom
Sebastião que o nomeou dono de uma fazenda na capitania de Salvador. Depois que
voltou da colônia, Pero foi nomeado copista da Torre do Tombo e foi neste período
que em contato com Camões o ajudou com a publicação de Os lusíadas e dos poemas já citados; Pero também trabalhara na
oficina de tipografia de António Gonçalves, onde foi impressa a primeira edição
do livro. A gazeta teve circulação em francês, inglês e castelhano, tendo circulação
também na colônia brasileira. Já de Garcia Orta, seu trabalho foi um tanto
perseguido pela Inquisição. Basta que se diga que a primeira edição dos tais Colóquios foi censurada e depois tirada de circulação em
Goa enquanto a família enfrentava longos processos no Santo Ofício, tendo a
irmã de Garcia sido queimada num auto-de-fé e ele próprio, depois de
morto, condenado também pelo tribunal a ter seus ossos desenterrados e
queimados.
A quase totalidade da lírica de Camões só foi impressa
depois de sua morte. E mesmo o poema que agora inteira 450 anos de sua primeira
impressão só veio ser conhecido por maior parte dos leitores em meados do
século XIX. “Ode ao Conde de Redondo” passou a integrar a lírica camoniana a
partir da segunda edição das “Rimas”, impressa em 1598, mas copiada de
uma versão manuscrita que se afastava, em alguns versos, da versão original,
justificado pelos estudiosos da literatura camoniana por duas razões, primeiro,
as fortes perseguições da inquisição sofrida pelos Colóquios que mesmo tendo o privilégio de circulação dado pelo
Conde, foi condenado como já dissemos a sair de circulação, e pelas tiragens
corrigindo os erros gramaticais e os cortes introduzidos inicialmente pela censura da Igreja.
As edições seguintes terão ainda utilizado essa versão com
suas variantes, como demonstrará em 1685, Faria de Sousa, ao confrontar em edição
impressa pelo menos duas versões. As observações feitas então não redimiu o
poema para a sua versão original e assim, com a versão variante, terá
prevalecido até princípios de 1880, quando Tito Noronha e depois Teófilo Braga
defendem que o texto seja preservado em sua forma original. Fato é que, mesmo em
vida, Camões terá feito outra variante do texto; essa só veio a ser conhecida bem
mais tarde, já depois do esforço de Tito e Teófilo.
Esse texto de Camões obedecendo aos preceitos das composições
laudatórias não constitui, entretanto, num trabalho de grande monta na sua literatura – tendo apenas
a função de ser uma amostra da sua produção inicial. O texto elogia a ascendência
do Conde de Redondo e exalta seus feitos bélicos, equiparando-os a Aquiles;
também compara Orta a Chiron, situando sua figura no panteão dos desbravadores.
A inovação de Camões reside na forma: não compõe um soneto ou um epigrama como
era comum, mas uma ode, composição mais longa e elaborada, colocando-se logo
superior às outras composições do seu tempo geralmente postas como abertura de livros.
A seguir, a partir dos arquivos dispostos on-line pela Biblioteca Nacional de Portugal apresentamos duas versões de dois textos distintos da primeira lírica de Luís de Camões: o primeiro texto é a ode evocada ao longo deste post numa versão de 1563; o segundo é uma elegia publicada em Historia da prouincia sancta Cruz de 1576.
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