Pensar o livro e o mundo digital

Por Pedro Fernandes




Não é de hoje que venho travando uma discussão acerca de uma questão que considero um tanto quanto delicada para o estágio atual do livro a que chamo por "massificação" da obra literária. Uso o termo entre aspas porque embora este não seja o adequado para ocasião me soa como um paliativo. Tudo começou ainda numa comunidade no Orkut dedicada ao José Saramago por volta de 2009 quando um usuário entrou para postar um link para baixar livros do escritor português on-line e eu me manifestei contrário à ideia: "Baixar um livro que não encontramos de modo algum por aqui pode ser, mas as obras do Saramago, todas, acho um desrespeito para com o escritor... Se ainda fosse um "crepúsculo", um "lua nova", "lua cheia", "lua minguante", "lua quarto-crescente", tudo bem, é comercial, não vale nada mesmo..." – ironizei. No mesmo instante me responderam discordar de minha posição.

Bem, a minha posição nessas comunidades (aliás, a única que estive dando pitaco foi essa do Saramago, nas outras sou figura morta) é mesmo a de soltar rojão – provocações, para usar um termo mais leve. E como tudo que a gente escreve pode ser lido com a pior ou a melhor das intenções, disseram-me que os "crepúsculos" da vida são também fruto de um trabalho. Ao que respondi: "É sim fruto de um trabalho; não estou negando isso; só não considero labor artístico, mas labor capital, entende? É a essência meramente comercial de tais obras que está em jogo. Não que eu considere uma queima de tais livros – julgo mesmo como importantes em alguns casos à formação leitora dos sujeitos, mas quando os crucifico, como agora, estou num terreno meramente pessoal. Pode-se dizer que sou um sujeito que cospe no prato que um dia comeu; digo isso porque comecei, para ser o leitor que hoje me considero, lendo esses romances baratos cujo modelo já está pronto e carece apenas de o escritor fazer os encaixes necessários para parecer diferente daquilo que ele escreveu/publicou semana passada."

O fato é que aí a questão se tornou um verdadeiro rolo. Se antes eu havia chamado a atenção para a relação arte-capital, agora a questão acaba tomando outros rumos (de certo modo rumos implícitos na questão primeira), como o de valia da arte ou democratização dela ou ainda para uma questão bem maior, "o que é obra literária nessa leva de matéria virtual?". Foi o que dois dos orkuteiros da comunidade veio dizer: um, que o papel da internet está em justamente democratizar o acesso a arte e outro disse que para uns Crepúsculo é arte, para outros Saramago é chato, que é tudo questão de gosto e gosto não se discute. “Pantanoso terreno esse em que tu pisas, rapaz!” Ralhei comigo. Agora, sem me estender tanto no caso, o que eu quero reiterar com tudo isso, no meio virtual em que estamos situados, se ainda não, caminhamos para isso e com uma certa urgência de quem não sabe bem aonde ir, quero reiterar é somente um fato: a nossa relação com os livros tem mudado. Basta que se diga que, desse tempo para cá, as coisas saíram do simples fato de digitalização clandestina do livro no formato em PDF para ler no computador e todo um mercado dos digitais criou forma com os e-books e a parafernália tecnológica – e-readers, i-pads, i-phones, tablets etc. Na nova plataforma em ascensão os livros caem mais que a metade do impresso e em pronunciamento recente os valores devem despencar mais ainda porque o governo estuda cortar impostos a fim de favorecer o barateamento dos tais e-books e da parafernália necessária ao seu consumo.

Essas constatações só ampliam o horizonte da discussão. Nem mesmo nos países em que esse avanço dos digitais já anda em outra escala é ainda possível destrinçar ou esclarecer um olhar mais específico para tudo isso. Tudo ainda é muito complexo. O que é fato, entretanto: estamos mudando numa escala que não conseguimos acompanhar. Toda essa mobilidade a que estamos sujeito e, mais ainda, os artefatos (de papel) que nos eram antes escudos de proteção e agora são substituídos por uma película simples (a tela do PC, dos tablets, dos i-phones, dos e-readers) que nos deixam despidos, desprotegidos, carece, tudo isso, de uma discussão mais acurada sobre. Talvez o único fato que posso ter certa segurança para dizer é que toda essa parafernália não será responsável pela extinção do impresso. Apesar de toda uma máquina capitalista que nos quer enfiar goela abaixo modos novos de se relacionar com novos artefatos, eu sou dos que consideram um futuro no qual conviverão os livros de papel e os digitais, assim como hoje convivem o CD, o vinil e os modos mais sofisticados de disseminação da música. No caso dos livros, no Brasil mesmo já se formam as pequenas editoras – tanto para impressos como para digitais – que buscam filões esquecidos pelo grande mercado. Dos impressos, por exemplo, os editores já trabalham com edições de luxo, de curtas tiragens, com capricho nos detalhes – iguais ao século de nascimento da imprensa; dos digitais, há editores que se especializam nos gêneros mais quistos no meio, como o conto, a crônica, a poesia. Enfim, ao que se vê tudo se ajeita.

Agora, é indispensável pensar mais sobre os rumos da própria literatura e sobretudo dos livros nisso tudo. Se não sou ingênuo de crer num apocalipse do livro também aposto num não apocalipse da literatura. O que não sabemos é qual rumo tomarão livros e a literatura com essas novas tecnologias. Que a internet deva ser um espaço para a democratização da arte, conforme defendeu aquele orkuteiro, não tenho dúvidas, mas aí há que se discutir outro conceito, o de democratização. E nesse intervalo sobre democratizar, pensar também nos limites da propriedade autoral, agora, novamente reinventada.

E quero chegar a conclusão pondo em causa, aquilo que acredito. Acredito que a difusão do livro, é essa a questão primeira que se formou quando o orkuteiro jogou o link para downloads de livros, há de ser feita por outros meios (principalmente) que não apenas esse da internet. Agora estou me referindo diretamente sobre os impressos. Não ponho fé e nem posso concordar com essa difusão ilegal on-line que considero como falsa democratização. Lógico que, se em toda regra há exceção, aqui também tem a sua: a não ser que o meio digital seja o único interesse do autor, como os que hoje se lançam nos e-books ou ainda naqueles que não veem problemas no uso concomitante dos dois meios.

A meu ver, o processo de democratização do livro (se nos atermos em específico à questão) não deve ser rebaixado a ideia de banalização, que é o acontece quando o livro de papel ganha as malhas das redes ilegalmente para o download. Democratização ou acesso ao livro é algo, portanto, bem mais complexo que simplesmente jogar livros na rede e deixá-los para que um leitor os pesque. Há que se rever certos conceitos que tem a ver com a própria formação do leitor. Ou o que podemos fazer nós, considerados leitores, pelos livros; temos os nossos, lemos, mas não temos nunca a cultura de indicar as nossas leituras aos outros, tampouco a de emprestar o livro. Ainda somos egoístas a ponto de achar que o livro é propriedade fechada ao seu "dono". Segundo, o que podemos nós, leitores, fazer para exigir do Estado (e o Estado diretamente dos grandes conglomerados editoriais) políticas de incentivo à leitura? E sobretudo: esses usuários da internet, "carentes" de dinheiro para compra de livros, terão mesmo, na cultura do download, a de leitura desses downloads? (Não sei se há pesquisas do gênero – se não fica a dica).

Aqui, como num hipertexto que link puxa link, numa rede infinita de nós, e nunca se chega a uma conclusão sobre, entramos noutra rede de questões que diz respeito ao próprio uso da internet: estamos preparados para essa cultura do download ou nos reduzimos às doses de besteirol na rede? Sobre isso, há dados: o Brasil é o pior país no mundo em termos de uso eficiente da internet. Outra: o download pode ser uma estratégia do que nós leitores podemos fazer para exigir não ao Estado, mas diretamente aos conglomerados editoriais outras políticas de incentivo à leitura? Vale pensar.


* Este texto é resultado de um conjunto de notas publicadas aqui por ocasião do Dia Mundial do Livro em 2011; depois de reescrito ele foi publicado inicialmente no blog LiteraturaBr.


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