Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz – correspondência amorosa completa 1919-1935
Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz - livro editado pela Capivara Editora em parceria com a Portugal Telecom reúne na íntegra produção epistolar entre o poeta português e sua namorada. |
Por esses dias comentamos
aqui sobre as cartas entre F. Scott Fitzgerald e sua filha; outro dia, fomos às
cartas de Charles Darwin; sobre as cartas de Octavio Paz e seu amigo Enrique
Krazue; sobre as cartas entre Carlos Drummond de Andrade e muitos intelectuais;
e sobre as cartas eróticas de James Joyce a sua mulher; e, como se vê, poderíamos
até compor uma coluna aqui (estamos pensando sério sobre) que tivesse esse
interesse...
Há algo de extrema importância
estar às voltas com esse legado dos escritores – podemos dizer com todo sentido
que comporta a palavra – e que, vale determinar aqui: é o fato de ser pelas
correspondências que se pode esclarecer muito da vida pessoal do
seu autor àqueles que tem na biografia seu campo de realização profissional
enquanto pesquisadores. Em muitos casos, a correspondência também possui elementos esclarecedores para determinadas questões
da própria obra, afinal, quem disse que os escritores não confessam suas inquietações
literárias para os mais achegados? Ou ainda, a mera satisfação daquele gostinho de curiosidade que ronda o espírito fofoqueiro dos leitores...
O que pensamos é que o será do
futuro – não muito distante é bom que se diga – quando as formas de correspondências
que agora são outras, muito mais difíceis ao acesso das vias comuns. Como saberemos de biografias, de obras, de inquietações, como fofocaremos sem a preservação desses materiais da intimidade? Seria caso
a averiguar entre escritores que têm a força do hábito de utilizarem o e-mail,
por exemplo, ou outras formas de contato mais modernas, saber como procedem com esse caso. Haverá mesmo quem tem tempo para arquivar milhares de
e-mails por pastas diversificadas dando contas de determinados assuntos,
contatos etc.? Num futuro talvez não tenhamos mais a chance de esclarecer
determinados porquês. Ou será que a vida já estará tão aberta às vistas de
todos – seja porque a figura do escritor é cada vez mais a de uma estrela que
divide o tempo entre aparições públicas para entrevistas, feiras, colóquios
etc. – que não mais será necessário sair à cata de materiais como
correspondências para dizer o que ficou por dizer? São questões a se pensar no
instante em que chega às livrarias um livro que chegou a tempo de esclarecer
algumas reduções patéticas (o pior da fofoca) que já se desenhavam em torno de Fernando
Pessoa. Não que o livro dirima tais coisas, mas contra tabloides existem documentos.
Pela primeira vez, graças ao
apreço e zelo de Pedro Corrêa do Lago que foi adquirindo ao longo de alguns
anos as muitas cartas trocadas entre o poeta português e a jovem Ofélia
Queiroz, se publica uma edição integral do material. Falamos de Fernando Pessoa & Ofélia Queiroz – correspondência amorosa completa 1919-1935. Uma das reduções apresentava um Fernando Pessoa que teria morrido
virgem; a outra, mais besta de todas, que, o não envolvimento do poeta com
mulheres, seria atribuído a uma homossexualidade reprimida. Dizemos isso com o olho no livro-tabloide de José Paulo Calvanti Filho e sobre o qual falamos aqui. Duas reduções,
aliás, que em nada acrescentam ao estudo acurado da biografia e tampouco extensa obra já conhecida
e a de maior extensão ainda por conhecer. Agora, também é fato, que boataria tem apelo popular e logo grande público.
Não é a primeira vez que um
material do gênero vem a público. Algumas correspondências entre Pessoa e
Ofélia foram publicadas com ajuda dela própria. Uma edição em 1978 e outra em 1996. Depois a
pesquisadora Manuela Parreira da Silva, publicou em 2012, uma versão parcial das
correspondências (algumas delas podem ser lidas no catálogo no fim do texto). Mas, só agora, é que a troca de diálogos entre os dois é
publicada integralmente. Ao todo, são 323 cartas; em grande maioria de Ofélia
que enviou a Pessoa 272. Além disso, o livro editado em parceria da editora brasileira Capivara com a Portugal Telecom e sob organização de um dos mais conceituados especialistas na
obra de Fernando Pessoa, Richard Zenith, reúne telegramas e cartões postais,
totalizando 348 documentos. Mais da metade são inéditos.
Toda a correspondência atesta
três momentos da relação entre Pessoa e Ofélia: de quando se conheceram – na Lisboa
de 1919, quando o poeta tinha 31 anos e era funcionário do comércio,
trabalhando num escritório do seu primo e sua vivência com a literatura se
resumia ainda na sua proximidade com várias das revistas literárias de seu
tempo, e a menina, então com 19 anos, recém-contratada como datilógrafa no
mesmo estabelecimento; de quando romperam em 1920 e se reconciliaram nove anos
depois; e quando o namoro evoluiu para uma amizade que rendeu até 1935, data
das últimas correspondências.
As cartas atestam que de fato
os dois viveram uma intensa relação amorosa, proibida para os olhares da
sociedade da época, dado uma série de fatores, e a forma como são apresentadas sugerem claramente que tudo não
foi apenas troca de beijinhos às escondidas como quer Richard Zenith; há algo
mais sério entre os dois como confirma a pesquisadora Manuela Parreira da Silva – “O
que liga uma carta à seguinte é uma espécie de canal aberto à necessidade
premente e permanente da presença do outro, própria, afinal, de um estado de
paixão.”
Os lugares dos encontros mapeados em alguns dos roteiros
desenhados por Pessoa para os encontros entre os dois também atestariam isso. Ofélia
se queixa do estado reservado e até estranho do amado, conversam sobre as
leituras ousadas que ele fazia para ela, como a de uma versão francesa do Kama Sutra.
Mesmo tendo rompido com Ofélia nove anos depois de se
conhecerem, Pessoa guardou toda a troca de correspondência entre os dois, o que
decerto atesta que a forte ligação que manteve com ela não foi algo de
brincadeira; também o tratamento de Ofélia confirma a intensa relação – não apenas
pelo fato de confirmar em vida ter sido namorada de Pessoa e ter tornado pública
as missivas trocadas entre os dois, como pela vida que levou, só casou-se
depois da morte do poeta e não chegou a ter filhos.
O esfriamento da relação poderia ter ligação no
envolvimento cada vez maior de Pessoa com a literatura; Ofélia se queixa disso e
diz nunca ter compreendido a estranha criação dos heterônimos, mesmo quando o
namorado fez uso deles como forma de “apimentar” a relação. Enfim, se esse jogo
amoroso não esclarece questões pessoais da vida do poeta, deve ao menos atiçar ainda
mais a fogueira das fofocas. De um todo, vai contrariando o que terá dito o
próprio numa das citações mais conhecidas suas – “Todas as cartas de amor são ridículas”.
A seguir leia um recorte com sete correspondências entre Pessoa e Ofélia (material publicado inicialmente no site da Revista Época e no site Folha de poesia):
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