Conselhos de Ernest Hemingway para um aspirante a escritor



Em março deste ano ficamos a par de uma correspondência de Oscar Wilde em resposta ao jovem Morgan, um aspirante a escritor que procurou o escritor inglês à procura de alguns conselhos, digamos, literários. Natural. Muitos escritores recebem correspondências do gênero. Algumas é que nunca são respondidas, o que não foi o que aconteceu nesse caso. Wilde, a certa altura da carta alerta sobre o que é estar nesse campo pantanoso da literatura – “o melhor trabalho na literatura é sempre feito por aqueles que não dependem dela para ganhar seu pão de cada dia”. Estava certo o escritor. Fazer o bem sem olhar a quem parece ser o ditado popular que mais se ajusta a qualquer um que queira ou já esteja nesse território artístico das letras.

Nessa mesma situação é que se passa este outro acontecimento. Na primavera de 1934, um jovem que também queria ser escritor pega uma carona e vai à Flórida para conhecer seu ídolo; ninguém menos que Ernest Hemingway. Arnold Samuelson tinha só 22 anos de idade. Morava com os pais no sul de Dakota do Norte. Terminou o curso de jornalismo pela Universidade de Minnesota, mas se recusou a pagar a taxa pelo diploma. Tinha, como de muitos jovens dos Estados Unidos de seu tempo, o sonho de viajar pelo país afora. Falando nisso, vocês hão de lembrar que um grupo de jovens anos mais tarde cumpriria esse desejo e daria forma a um dos movimentos mais profícuos da literatura estadunidense: a Beat Generation (leia mais aqui).

Samuelson fez algum trocado vendendo textos para o domingo num jornal, o Minneapolis Tribune, e depois arrumou a mochila para sair em busca de histórias pelo país. Em abril de 1934, leu um conto de Hemingway no Cosmopolitan – era “On trip across”. Esse texto mais tarde seria incorporado como parte do seu quarto romance, Ter e não ter. O jovem ficou tão impressionado com a história que decidiu viajar 2.000 milhas para ir ter com o escritor e pedir-lhe conselhos. “Parecia uma coisa idiota a ser feita”, escreveria Samuelson mais tarde, “mas um vagabundo de vinte e dois anos de idade, durante a Grande Depressão, não tinha muita razão para fazer o que fez.”

Então, no mesmo momento quando a maioria dos vagabundos ia para o norte, Samuelson viajou para o sul. Pegou  carona para Flórida e, em seguida, um trem de carga para Key West. Quando chegou aí, descobriu o quanto os tempos eram difíceis. A maioria das fábricas de charutos havia decretado falência e a pesca era o que ainda sustinha muitos dos pobres. Naquela noite, foi dormir nas docas usando da mochila como travesseiro. Foi acordado por um policial que o levou para dormir numa cela da cadeia da cidade. “Eu estava preso a noite e era liberado todas manhãs para ver se eu encontraria uma forma para sair da cidade”, escreve Samuelson. Depois de sua primeira noite na prisão, infestada de mosquitos, foi à procura do morador mais famoso da cidade.

Quando bati a porta da frente da casa de Ernest Hemingway em Key West, ele saiu e se pôs à minha frente, vesgo e aborrecido, esperando que eu falasse. Eu não tinha nada a dizer. Não conseguia lembrar de uma palavra de todo o discurso que havia ensaiado. Ele era um homem grande, alto, magro, de ombros largos e estava com os pés afastados, os braços postos no quadril. Parecia estar na postura instintiva de um lutador pronto para bater.

“O que você quer”, perguntou Hemingway. Depois de um momento em silêncio, Samuelson explicou que tinha pegado caminho de Minneapolis só para vê-lo. “Eu li o seu conto ‘On trip across’ no Cosmopolitan. Gostei tanto que vim ter uma conversa com você.” Com isso, Hemingway pareceu relaxar. “Por que diabos você não disse que só queria mastigar gordura? Eu pensei que você queria me visitar.” Hemingway disse a Samuelson que estava muito ocupado e convidou-o para voltar a uma e meia da tarde do dia seguinte.

Depois de mais uma noite na cadeia, Samuelson voltou à casa do escritor e o encontrou sentado à sombra da varanda, vestindo calças cáqui e de chinelos de couro. Tinha um copo de uísque ao lado e uma cópia do The New York Times nas mãos. Os dois começaram a conversar. Sentado da varanda, Samuelson podia sentir que Hemingway queria mantê-lo a uma distância segura: “Eu estava na sua casa, mas não era a mesma. Era como se ele estive falando com alguém da rua.” Começaram então a falar a certa altura do conto publicado no Cosmopolitan e Samuelson mencionou as tentativas fracassadas de escrever ficção. Hemingway então lhe deu alguns conselhos:

A coisa mais importante que aprendi sobre a escrita é nunca escrever muito de uma só vez. Nunca escrever até a coisa acabar. Deixe sempre um pouco para o dia seguinte. A principal coisa é saber quando parar. Não espere ir até o fim do que quer escrever. Quando você ainda está indo bem e chegar ao momento interessante que sabe ainda o que vai acontecer a seguir, essa é a hora de parar. Em seguida, quando ficar sozinho, não deve pensar sobre isso, deixa sua mente e seu subconsciente fazer o trabalho. Na manhã seguinte, depois de uma boa noite de sono, quando estiver se sentindo novo novamente, volte ao que escreveu e reescreva tudo outra vez. Quando chegar a um lugar interessante e que você sabe o que vai acontecer em seguida, pare. Dessa forma, quando for ver, o seu texto estará repleto de passagens interessantes e quando escrever um romance nunca ficará preso a um mesmo lugar.

Hemingway aconselhou Samuelson a evitar os escritores contemporâneos e competir somente com os mortos, cujas obras têm resistido ao teste do tempo: “Quando você passá-los, saberá que está indo bem.” Perguntou ao jovem quais eram escritores que ele gostava. Samuelson disse que gostava de Robert Louis Stevenson e era aficionado por Henry David Thoreau. “Já leu Guerra e paz”, perguntou Hemingway. Samuelson disse que não conhecia. “Esse é um livro bem maldito. Você deve lê-lo. Vamos até meu escritório e eu vou fazer uma lista do que você deve ler.”

Seu escritório era na parte de trás da casa. Eu o segui por uma escada pelo lado de fora até uma sala quadrada com um piso de azulejo e janelas fechadas em três lados e longas prateleiras de livros do alto até o chão. Num canto havia uma grande e antiga mesa de tampo achatado e uma cadeira antiga com um encosto alto. Hemingway sentou-se aí e eu numa cadeira no canto sentei-me de frente para ele do outro lado da mesa. Ele encontrou uma caneta e começou a escrever num pedaço de papel e naquele silêncio eu estava muito pouco à vontade. Percebi que estava tomando seu tempo, mesmo assim tinha vontade de entretê-lo com minhas experiências de vagabundo, mas pensei que seria muito chato e me mantive calado. Eu estava lá para aproveitar tudo o que ele daria e não tinha nada para voltar.

Hemingway escreveu uma lista com 16 títulos e entregou a Samuelson:

The blue hotel, de Stephen Crane;
The open boat, de Stephen Crane;
Madame Bovary, de Gustave Flaubert;
Dlubiners, de James Joyce;
O vermelho e o negro, de Stendhal;
Servidão humana, de Somerset Maugham;
Anna Kariênina, de Liev Tolstói;
Guerra e paz, de Liev Tolstói;
Os Buddenbrook, de Thomas Mann;
Hail and farewell, de George Moore;
Os irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski;
The Oxford Book of English Verse
A enorme sala, de e. e. cummings;
Morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë;
Far Away and Long Ago, de W. H. Hudson;
O americano, de Henry James.

Em seguida, Hemingway pegou de sua estante uma coleção de contos de Stephen Crane e deu a Samuelson. Deu-lhe também uma cópia de seu romance, Adeus às armas. “Gostaria que depois que você acabasse de ler me enviasse de volta o livro”, disse Hemingway em relação ao seu romance. “É que esta é a única edição que tenho.” Samuelson muito agradecido aceitou os livros e os levou para a cadeia para lê-los à noite. “Eu não tinha mais vontade de ficar por mais uma noite”, escreve ele, “e na tarde seguinte terminei de ler Adeus às armas já com a intenção de pegar o primeiro carro para Miami. À uma hora eu deixei os livros de volta na casa de Hemingway.” Quando ele chegou foi surpreendido com um pedido do escritor:

Tenho algo que quero falar com você, vamos sentar... Depois que você saiu ontem, eu fiquei pensando que estou precisando de alguém para dormir no meu barco. O que está planejando agora?

Eu? Eu não tenho nenhum plano.

Pois bem, eu tenho um barco que está vindo de Nova York. Terei de ir até Miami na terça-feira e depois disso preciso ter alguém a bordo. Não seria muito trabalho. Se você quiser trabalhar, você limpa o barco pela manhã e terá tempo para sua escrita.

“Isso seria ótimo”, respondeu Samuelson e assim começou um ano de aventura como assistente de Hemingway. Por um dólar ao dia, dormia a bordo do novo barco do escritor, o Pilar, e o mantinha limpo e organizado. As vezes em que Hemingway ia pescar ou quando levou o barco para Cuba, Samuelson foi junto. Das experiências ao lado do escritor, ele escreveu um livro de memórias, With Hemingway: a year in Key West and Cuba. No decorrer desse ano, Samuelson e Hemingway conversaram longamente sobre a escrita. Das suas discussões, Hemingway escreveu em 1934 um artigo para o Esquire intitulado “Monologue to the maestro: a high letter” (aqui) – um texto que era na verdade os conselhos dados a Samuelson.

Depois de findado o contrato de trabalho, Hemingway foi com o jovem à prisão pegar sua mochila e o violão. Samuelson lembrou-se do sentimento de triunfo que foi voltar com o famoso escritor para pegar suas coisas.



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