As cartas entre F. Scott Fitzgerald e a filha


Alguns filhos de escritores, talvez de tanto estarem entre papeis e livros, se debandam para a mesma profissão do pai; outros têm uma relação mais complexa – sofrem da ausência paterna, afinal, que os escritores são pessoas normais, sim, são, mas o que todos têm em comum é seu mundo paralelo, onde se isola do mundo para a escrita. O gesto de escrever está associado na maioria das vezes a este fechamento; é necessário afastar-se do agito das multidões e enfrentar seus diabos interiores, à torto e à direito, para se querer produzir alguma coisa que valha. Recentemente, Ana Miranda, romancista brasileira, falou desse processo para um programa na SESC TV. E o depoimento dela se confunde com isso que dissemos e se confunde com o sentimento de muitos outros que têm na escrita a labuta pelo trabalho. Há ainda os casos mais complexos: além do ‘abandono’ os filhos de escritores padecem um tanto dos altos e baixos dos pais. O texto a seguir é uma tradução livre de "Com todo su dolor papá Fitzgerald", no El País.


F. Scott Fitzgerald com a filha.

No caso de F. Scott Fitzgerald, a rotina demasiadamente complicada entre ele e o mundo de fora da escrita, bem com as situações enfrentadas com Zelda (sugerimos ler essa matéria sobre o escritor estadunidense), não foram suficientes para que sua relação tenha sido abalada. Ao menos, se ele não soube demonstrar pela via comum o amor que nutria pela pupila deu-lhe mais que o necessário para lhe garantir a sobrevivência nesse mundo em descompasso e tão bem compreendido por ele. Os Fitzgerald, o pai principalmente, deu, sobretudo, instinto de sobrevivência. A filha de um dos escritores mais grandes e malogrados da história da literatura pecou pela frialdade como única tábua de salvação frente aos tormentos de seu pai. Não se pode censurar a pequena Scottie, ou Scottina, como às vezes lhe chamava ele, a saudade infantil por uma família mais convencional. Tampouco, que foi uma menina egoísta. Ela mesma o reconhece com dor no prólogo de Cartas a mi hija (Cartas à minha filha, em tradução livre): “Compreendi que só havia uma maneira de sobreviver à sua tragédia, e era ignorá-la.”

Cartas a mi hija reúne pela primeira vez em espanhol a correspondência que Fitzgerald manteve com sua única descendente, desde seu primeiro acampamento de verão até a universidade. São, simplesmente, peças tão sábias, delicadas e desnudas, escritas com tanto amor e compreensão para com ela, com tanta esperança, que o resultado é quase que desolador. Como apontou o escritor Malcolm Cowley numa entrevista ao The New York Times, quando Fitzgerald escreve à sua filha em Vassar, o faz no fundo a si mesmo em Princeton, antes que tudo se acabe fatalmente ou entre em colapso definitivamente. “Na vida, apenas acredito nas recompensas pela virtude e nos castigos por não cumprir com suas obrigações, que sem dúvidas se pagam caros”, lhe escreveu no verão de 1933. “Pedirás à senhora Tyson que te deixe ver um soneto de Shakespeare onde se lê, ‘O lírio que se apodrece cheira pior que a selva?’”.

Cartas de mi hija está cheio de uma urgência e uma magia que o dotam de uma importância independentemente do que você seja leitor ou não da obra de Fitzgerald” – diz Ana S. Pareja quem organizou a edição espanhola. “Salvando as distâncias, é um testemunho equiparável às Cartas a mi madre de Sylvia Plath, é apaixonante por si mesmo”. Frances Scott Fitzgerald, escritora e jornalista que morreu em 1986,  se decidiu em publicar as missivas ainda em 1965. Tinha 44 anos, a mesma idade que seu pai ao morrer. Um pouco farta de escutar as histórias que todo mundo tinha sobre ele decidiu contar por conta própria e dar mostra às cartas que havia guardado há anos. “Quando chegava a Vassar, me limitava a examiná-las em busca de checar alguma coisa nova e logo metia na gaveta de volta. Agora estou orgulhosa de havê-las conservado. Sabia que eram magníficas, e se as conservei não foi desde logo, por ganância, porque papai era então um obscuro escritor sem clareza e nada podia imaginar-se que O grande Gatsby se traduziria para 27 línguas. As guardei da mesma maneira que alguém guarda Guerra e paz para lê-las noutro momento ou para visitá-las algum dia.”

F. Scott Fitzgerald, Zelda e a pequena Frances


Os piores anos começaram quando Frances tinha 11 anos. Ao seu pai, ela escreve, “o mundo começou a vir encima” e começou a tomar forma o que ele enunciou em seu ensaio The Crack-Up, esse “lento processo de demolição” do qual ele já não escaparia. Enquanto o álcool e o fracasso começam a dar seus devastadores frutos, ele lhe escrevia amorosas cartas a sua filha onde dava conselhos literários (“se não consegue decompor um pouco tua prosa, estará no nível do jornalista mal pago”); a animava a ler e escrever (“num sentido literário, eu não te posso ajudar, mas que além de um determinado ponto”); a construir um estilo (“não te havia escrito esta carta tão grande se não houvesse vislumbrado, por debaixo da monotonia de teu conto, algumas matizes de um ritmo autêntico que tem o estilo de Scottina”); a que seja uma mulher atenta (“o mundo, de maneira geral, não é habitado por praias e nem por clubes de golfe”); a que tivesse disciplina com seus estudos, ao mesmo tempo em que se mostrava tolerante com que preferisse dançar, sair com meninos e pedir-lhes dinheiro (“se não fazes a ideia, te converterás numa dessas meninas que não se são milionárias ou pobres de solenidades. E não eres nem uma coisa e nem outra.”) e, finalmente, a que compreenda a terrível tormenta que se cerca. Numa carta de 1938,  Fitzgerald fala para a filha sobre sua relação com Zelda, sobre o erro que foi se casar com ela, sobre o dano que dar-se conta ela lhe tem causado: “Você me faz o favor de ler esta carta uma segunda vez? Eu a reescrevi duas vezes”, lhe pede.

Scottie foi a personagem de um dos melhores e mais trágicos relatos de seu pai, “Regresso a Babilônia”. Um ex-alcoolíco regressa a Paris por sua filha abandonada, sua redenção passa a ser recuperá-la, mas ela que é esse horizonte de salvação, lhe escapa de maneira inexorável. “Algum dia voltaria; não podiam condená-lo a está pagando suas dívidas eternamente. Mas queria que sua filha e à margem disso, nenhuma outra coisa já lhe importava”, se lê ao final do conto.

Em sua carta mais conhecida, Fitzgerald enumera para a filha (ainda em idade escolar) uma série de coisas das que se deve e não se preocupar. “Preocupa-te com a coragem, com a higiene, com a eficácia na equitação... Não te preocupes com a opinião dos outros, pelas mancadas, pelo passado, pelo futuro, por fazer-te maior, porque alguém que te supera, por triunfo, por fracasso, pelos mosquitos, pelas moscas, pelos insetos em geral, pelos pais, pelos meninos, pelas desilusões, pelos prazeres, pelas satisfações...”

Talvez por isso baste terminar com citar a própria Scottie que no já citado prólogo, também com uma recomendação: “Escutem agora atentamente ao meu pai. Porque dá bons conselhos e estou segura de que, se não houvera sido meu pai, a quem tanto amei como odiei, agora não seria a mulher mais culta, atrativa, exitosa e imaculada sobre a face da terra.”

Comentários

Unknown disse…
Independente de ser Escritor, cada um temo seu modo de Amar os filhos. O difícil é ser entendido.
A filha de F. Scott Fitzgerald compreendeu o Amor do seu Pai. A literatura Universal ganhou com isso.

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual