Três coisas sobre Octavio Paz
Dentre os projetos literários conduzidos por Octavio Paz destaca-se a revista Vuelta da qual foi editor durante largo tempo. Enrique Krazue chegou ao periódico na década de 1970 e construiu ao lado do escritor mexicano uma parceria que foi além do lado profissional - Enrique tornou-se um amigo pessoal de Paz e a ele foi confiada muita da correspondência que escreveu durante as suas viagens. Neste texto editado pela primeira vez em português numa tradução livre de Pedro Fernandes está registrado essa proximidade e como foi a amizade de Paz para a vida de Krazue. Ao fim da postagem, anexamos a tradução de três correspondências do autor de O arco e a lira dirigidas a Krazue - também publicadas pela primeira vez em português.
Cartão Postal de Octavio Paz para Enrique Krauze. Leia a transcrição do texto no fim dessa postagem. Imagem: Letras libres. |
Por Enrique Krauze
Naqueles tempos imemoriais, anteriores ao correio
eletrônico, Octavio Paz se comunicava conosco – seus colaboradores na revista Vuleta – através de três meios: a
conversa pessoal, o telefone e sempre nobre e agora quase extinto gênero, a
carta.
Além das reuniões mensais com o conselho de redação (que
merecem uma evocação à parte) e das coincidências ocasionais em reuniões
sociais, meus encontros com Paz ocorriam em seu departamento de Reforma e
Guadalquivir. Encantava-me a atmosfera de recolhimento que se respirava naquela
biblioteca, isolada do corpo principal do edifício e do ruído mundano por um
pátio de azulejos vermelhos e a estufa que Marie Jo mantinha amorosamente. As visitas
ocorriam por volta das seis da tarde, depois da sesta e ao calor de um bom
whisky. Embora Octavio fosse rigoroso com sua “ordem do dia”, a conversa
transcorria relaxada e cordial. Depois de viajar com detalhes os temas próprios
da revista (autores, colaborações, números futuros, pontos administrativos)
abordávamos as querelas intelectuais ou políticas do momento e às vezes
tocávamos em assuntos mais pessoais. A seriedade característica de Octavio, sua
incessante busca da verdade, levava quase sempre a uma referência filosófica,
histórica ou literária que vinha ao caso e que tinha uma localização precisa em
sua biblioteca. Seus livros era uma incitação permanente, um tabuleiro de
relações, uma extensão de sua memória. Recordo, por exemplo, como uma alusão
incidental a “flutuação da alma feminina” o levou a tirar num instante uma
edição de Alexander Pope e a ler em voz alta, com grande regozijo, um poema que
quase nos convenceu aos nós dois sobre essa suposta condição “essencial”. Era
uma delícia como passavam as horas nessas tardes, que haviam sido perfeitas
senão por minha antipoética alergia aos gatos, como assim eram com Octavio e
Marie Jo.
A conversa telefônica era diária e, se não recordo mal,
ocorria logo às doze da manhã. “Há que estar atentos a seu biorritmo”, me
advertiu Alejandro Rossi, e tinha razão, porque importunar a Octavio às dez
horas podia despertar ao Zeus tonante que levava dentro de si. Comigo,
entretanto, foi sempre cortês e circunspecto, mesmo frente às minhas torpezas
ou desatenções, ou antes às naturais desavenças que sempre resolvíamos tomando
distância e recorrendo ao âmbito mais serenos das cartas. A prática telefônica
era mais livre que a pessoal, e de vez em quando caía numa anedota picante ou à
fofoca agradável. Um hábito estranho de Octavio – talvez um truque que ele
referia-se algumas vezes – era sua mania de listar “três coisas”: o assunto
“tem três aspectos”, dizia, e um devia esperar até terminar o reconto para
rebater ou argumentar. Outro coisa curiosa era a forma em que usava para dar
por terminada uma conversa: “Bom, lhe deixo...”, e desligava o telefone sem
maior aviso.
Daqueles contatos pessoais em sua casa ou por telefone é
somente a memória entrecortada: frases e ideias que de pronto de me assaltam
proustianamente, o momentos em que Octavio me reaparece em sonhos. Todo isso se
desvanece, mas por felicidade há as cartas que nos enviava. O arquivo de Vuelta conserva uma boa coleção delas.
Octavio as ditava por telefone a Rosa Bertha Bringas, sua gentil secreária em Vuelta ou, com maior frequência, às
escrevia à mão e dava aos seus sucessivos ajudantes: entre eles o fiel Eusebio
Rojas – que o acompanhou à Índia – e a paciente María Luisa Suárez. Todos,
secretários e colaboradores, nos doutoramos em paleografia para poder decifrar
sua caligrafia rápida e sinuosa.
As cartas de Paz que conservamos no arquivo de Vuelta correspondem, grosso modo, a
quatro gêneros: cartas de trabalho, reflexões de viagem, postais epigramáticas
e missivas de caráter pessoa. Algumas estão dirigidas a mim, várias outras a
Aurelio Asiain, herói silencioso de mil batalhas, verdadeiro interlocutor
literário de Paz. Até a pouco dormiam em seus feixes, mas agora, graças à
generosa anuência de Marie Jo Paz, podemos oferecer algumas ao leitor com uma
pequena mostra do Paz epistolar. Em suas cartas de viagem, por exemplo, Paz
descobriu aspectos desconhecidos que assimila e conquista para si mesmo e para
o público do México. São rascunhos de ensaios futuros, ou felizes confirmações
de ensaios já publicados. Muitos dos problemas específicos do século XXI
aparecem nesses textos, como vislumbres nítidos. As simpáticas postagens, por
outra parte, refletem o humor culto, específico de Octavio. Mas o mais
importante desde a visão da história cultural são suas cartas de trabalho,
porque refletem Paz em seu trabalho: sua laboriosidade, sua curiosidade, seu
gosto pelos detalhes, sua paixão pelas batalhas ideológicas, seu espírito de
alerta, sua cortesia, sua atenção a opinião alheia, inclusive suas dúvidas; a
mente editorial de Paz era uma mesa de redação – informada e cautelosa – em
perpétua discussão consigo mesmo. O leitor médio o recordará sempre como um
poeta e ensaísta, por acaso desde o princípio Paz abreviou na profissão de
editor, que começou a desenvolver muito prontamente, em suas publicações no
início dos anos trinta. Esse entusiasmo editorial lhe manteve sempre alerta e
com ânimo combativo.
Em suas últimas semanas de vida me disse prontamente: “No
futuro você compreenderá a importância que foi Vuelta em sua formação.” Eu acreditava sabê-lo já, mas então agora
– há trinta anos da fundação daquela revista, eu me incorporei em fevereiro de
1977 – creio entender melhor o que me queria dizer e valorizo cada mais seu
ensinamento, sua obra e sua amizade. Quando lamento que sua morte há posto um
fim a essas inestimáveis “três coisas”: sua conversa, suas chamadas e suas
cartas.
A seguir um conjunto com três correspondências de Octavio Paz
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Legenda com transcrição do conteúdo do cartão postal que ilustra essa postagem:
A 17 de outubro de 1982
Sr. Enrique Krauze
Vuelta
Leonardo da Vinci 18 bis
México, 19, D. F.
México
Querido Enrique:
Baixo a estrela fria da temperança, se me apareceu ontem à
noite o fantasma de Filodemo, mestre de Cícero, Horacio e Virgilio, para
queixa-se das feitorias de Vuelta: no
lugar de Demos escreveram Dermos e todavia arde-lhe a pele espiritual.
Saúdo a Isabel e a Tulio.
Um abraço.
Octavio.
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