O valor super-histórico da literatura

Por Pedro Fernandes

© Ada Thilen


Num outro texto que publiquei por aqui, “A necessidade humana de expressão artística” (aqui a primeira parte, e aqui a segunda)* eu partia da observação de que a Arte é inerente e necessária ao ser humano ao ver que ela comporta-se como algo comum às diversas épocas e culturas. Entendendo a necessidade artística como instinto e logo este também como condição humana eu apontava por trás dessa afirmativa outra coordenada, a de que a Arte reflete diretamente as condições históricas e sociais em que foi produzida. É sobre isso que pretendo comentar agora, dando ênfase a Literatura, porque pelo corpo das grandes obras literárias se é possível absorver vultos ou por que não o espírito da história e da sociedade no momento em que foram produzidas.

Ao entender que as condições históricas e sociais são também condições inerentes ao ser humano, então como ler Vidas secas, de Graciliano Ramos e não perceber o caudal de tais questões aí impressas? Como não entender que suas protagonistas enfrentam no dia-a-dia o conflito sobre a natureza de sua humanidade, pressionadas que são pelas forças avassaladoras do seu contexto? Não quero, evidentemente, com isso dizer que as obras literárias, seja esta de Graciliano ou outra qualquer, se restrinjam em seu corpo a este aspecto do histórico e do social? Não estou tratando todo texto literário como documentário da história e da sociedade? Não é isso. Acredito que o texto literário se guie muito mais por si próprio do que por fatores externos. Mas o que quero entender é se estas questões são também uma das quais que dão forma ao texto literário.

Questiono sobre porque, por essa via, também entendo que outro não poderia ser, por exemplo, o texto de Graciliano Ramos. Com uma linguagem peculiar, seu espírito de síntese entre outras características se ajustam numa maneira de fiel expressão do regime social, sufocantemente centralizado, marginalizado do sertão nordestino. Ainda que muito ou quase tudo que se tenha aí seja não seja mero produto da condição sertaneja, mas de próprio trabalho estético do autor, há algo, além disso, que faz com que Vidas secas emocione ao mais simples leitor – e aqui estou ocupando o lugar de quando eu tinha a idade em que li pela primeira vez esse romance, um adolescente do interior do sertão, recém entrado para o ensino médio; por isso sou muito suspeito para falar, mas posso apostar que o verdadeiro leitor (mesmo que em condições diversas da minha) seja capaz de senti-la tocar, numa cumplicidade misteriosa, os elementos mais íntimos de sua personalidade. Pode não senti-la familiar. E se isso não for capaz de sentir, acho que devo ser preconceituoso nessas horas e pedir gentilmente que volte aos bancos de alfabetização. Digo isso porque o mesmo também voltou a se repetir quando, agora, no curso de Letras dei a conhecer Os lusíadas, de Camões. Senti-me, igualmente, entre a dificuldade elementar da leitura e a beleza do texto literário, a mesma cumplicidade misteriosa que senti ao ler Graciliano.

Esses fatos revelam possuir a Literatura um valor absoluto, permanente e universal, que não se restringe às circunstâncias históricas e sociais que lhe definiram a técnica e a expressão, mas as transcende. Nós não aceitamos, certamente, mais as ideias políticas do Portugal medieval, mas aceitamos, sentimos, vivemos, em suma, suas formas quando lemos Os lusíadas; como se pela obra pudéssemos ter acesso a uma realidade outra, como se a obra tivesse o interesse de expressamente ir ter com uma sensibilidade muito particular que nos permite a experimentação do mundo evocado.

A questão que aqui se forma então é: que poder possui a literatura ou de quais recursos se vale o escritor para continuar tocando, através do tempo e do espaço, em meio a exigências tão diversas, essas sensibilidades? Não parece ser apenas o critério histórico e social para o qual somos evocados toda vez que sabemos o contexto por trás da história contada nos livros. A resposta pode ser complicada, mas a meu ver parece ser simples. Os textos literários rompem a barreira do tempo e do espaço, têm em comum o fato de incutirem em si o homem e suas eternas questões como solidificação de sua trama literária. No entanto, outra pergunta há de vir: e nós, enquanto humanos, nunca mudamos, no decorrer de todo esse tempo? Bem, em alguma coisa podemos ter evoluído. O que, entretanto, é resposta à questão, é que a Literatura enquanto expressão artística conserva, do seu modo, um valor super-histórico – que pode ser este do homem e suas eternas questões ou não – que permanece e está acima das transformações históricas e sociais, com suas concepções religiosas, filosóficas e morais, que aparecem e desaparecem, numa indefinida sucessão.

Em face dessa evidência, uma conclusão logo se impõe. É a de que, embora condicionando a técnica e a expressão da obra literária, os fatores históricos e sociais em geral não têm relação determinante, não decidem dos seus valores permanentes e absolutos. São apenas constituintes, determinantes não. Os valores permanentes de uma obra como Vidas secas e Os lusíadas – para ficar nos exemplos já citados – independem, por exemplo, dos contextos em que foram produzidas. Não serão por eles que deixarão de ser uma obra literária autêntica e duradoura.

No cenário contemporâneo possui um grupo, podemos assim dizer, de romancistas “politizados”. Para citar um, tomo José Saramago, escritor Prêmio Nobel português. Pela significação político-social e aproximações do que a crítica menor concebe como um romancista panfletário, cito em específico duas obras suas: Ensaio sobre a lucidez – em que o regime democrático é posto em xeque – e A caverna – em o que o escritor aproxima-se do mito da caverna de Platão para apresentar uma crítica ao capitalismo. Essas duas obras chegam às vezes ao que poderíamos chamar de sátira ao modelo social em que vivemos, no entanto, a lição dos fatos parece indicar que essas obras sobreviverão, tocarão amanhã a sensibilidade de outros homens, como Vidas secas ou Os lusíadas – que apesar do caráter ligeiramente diferente das duas obras saramaguianas – hoje tocam as nossas, não por significação ou ideologia política e social, relativa e transitória, mas pelos valores artísticos, realmente permanentes e absolutos, que tais obras possuem.

Isso tudo nos leva a uma conclusão geral. Certo parece que não está no conteúdo, que pode refletir de alguma forma o transitório das condições históricas e sociais ambientes, o valor permanente e universal de uma obra literária. Esse valor super-histórico se encontra na forma ou essência dela, onde o literato expressa, pelo conhecimento intuitivo ou instintivo, os ritmos universais da vitalidade, em outras palavras, o pulsar universal da própria vida, o mesmo em todos os tempos e em todas as partes. Quando “por um processo de eleição inconsciente”, o literato capta e exprime esse ritmo vital, sua obra adquire um valor transcendente das condições sob as quais foi criada. É o seu valor super-histórico. O valor da vida.

Nota

* Em maio de 2010, eu escrevi “A necessidade humana de expressão artística”. O texto foi dividido em três partes, recebendo a última o título de “O valor super-histórico da Literatura”. As duas primeiras partes foram publicadas em jornais daqui do Rio Grande do Norte (e, conforme os links disponíveis no corpo do texto, estão já disponíveis aqui no Letras), mas a terceira, nunca chegou sequer a ser enviada para um veículo de comunicação. O texto dessa publicação tem o seu devido lugar - o público.

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