O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho
Por Pedro Fernandes
Antes de ir adiante com qualquer observação mais acurada
para o filme de Kleber Mendonça Filho, o leitor há de me desculpar, vou cair no
mesmo coro já repetitivo de elogios, para dizer, pela não sei que vez que este
é sim a melhor produção brasileira desde 2012. Por onde tem passado O som ao redor tem recebido as melhores
críticas. Pode ser que me repita ainda quanto ao lugar de destaque que esse
trabalho ocupa no cenário cinematográfico do país. Por isso, também peço,
antecipadamente desculpas.
Digo 2012 porque o filme já estava pronto – apesar de só
chegar aos cinemas no mês de janeiro e em alguns outros lugares do Brasil só
agora em abril – e foi logo para lista dos melhores do ano de jornais de
prestígio como o New York Times. Aliás,
talvez tenha sido por esse estardalhaço produzido fora das fronteiras de seu
país de origem o que tenha feito (por ironia, mas sem novidade nenhuma no caso –
que é sempre assim: ainda padecemos da necessidade do aval externo para ver o
que de bom produzimos por aqui) o filme cair nas redes de cinema e receber o
olhar dos lugares menores no universo da crítica.
A primeira coisa que faz desse filme algo de bom é sua
capacidade de se distanciar do lugar-comum criado por algumas experiências cinematográficas
produzidas por aqui; é sabido que depois de Central
do Brasil, por exemplo, criou-se uma corrente melodramática para
acontecimentos corriqueiros como suporte à enredos, também depois de Carandiru ou Cidade de Deus criou-se um endeusamento da violência sem limites e
a epopeia do lado do bem, os policiais, versus os do lado do mal, os bandidos. Pois
bem, O som ao redor, além de se
distanciar dessas correntes, reinventa esta última, a da violência. É um filme disfarçadamente violento. Não chega a incomodar a visão porque tudo é muito encoberto, mas ao descobrir que esta é uma narrativa sobre a vingança ficará já dito que é violento, até porque uma coisa não existem sem a outra.
Acrescento ainda mais duas coisas: Kleber Mendonça Filho não
despreza a história do Brasil e vai buscar nela o cerne de alguns dos lugares
que têm dado cada vez mais a cara desde quando entramos nesse êxtase econômico que
vivemos nos últimos dez anos. Depois, compreende, e aqui já antecipo um ponto
que serve de conclusão à essas notas, os da casa grande ainda preservam a mesma
soberba de seu auge e, em grande parte, faz vistas grossa para a ascensão da
senzala e por isso, paga, muitas vezes com preço alto pela incapacidade de
descer do pedestal. O som ao redor
ainda aponta para uma perspectiva não muito animadora: mudamos sim, mas ainda
estamos impregnados de determinados gestos que nos entregam – os da senzala também
incorporaram muito da soberba da casa grande. De modo que, não se pode falar de
uma diferenciação de classes assim tão abertamente como tem sido moda corrente
na mídia. E isso é ruim? Não.
O filme quer pensar que uma mudança de
mentalidade não passa obrigatoriamente por uma mudança de poder aquisitivo. O processo
é gradual e lento. Mas que há uma paranoia que circula entre os da elite, isso não
há como esconder. E Kleber Mendonça Filho explora bem esse pesadelo – seja pela
presença constante da relação patrão empregado, seja pela insistência de uma
imagem que alcança um instante de fabulação depois de repetida (se a memória não
me deixa pecar) pelo menos duas outras vezes no decorrer do filme: a figura de
um moleque negro que sempre está nos telhados a cata de assaltos (e que no
fim de contas pode ser mesmo o responsável pelo roubo do som do carro da namorada
de João, logo no início do filme, disso não ficamos sabendo), visto por Bia,
depois encontrado pelos seguranças no alto de uma árvore e expulso da rua
depois de uma corsa, e multiplicado na cabeça da filha de Bia aos milhares a
invadir sua casa num misto de alucinação ou pesadelo. Ou ainda na comparação entre
o tamanho das duas TVs adquiridas na mesma rua: uma, gigantesca comprada por
Bia e outra menor pela vizinha, motivo pelo qual as duas caem no tapa.
Essa lentidão, por exemplo, é transmitida no filme pelo
andamento do namoro entre João e Sofia – que abre a trama e percorre até quase
o seu fim – e que cumpre o efeito de ilusão ao telespectador de uma narrativa
que parece ser o centro do tudo. E não é. Justo porque a explicação dessa
trama não está no corriqueiro, nem naquilo que se repete, mas está no detalhe. O som ao redor é sugestivo – desde o
princípio tudo aponta para o conflito entre patrão e empregado, melhor
detalhado já a partir do início da terceira parte. O romance é, portanto, o
menos relevante. Relevante é a relação de perseguição de Bia – casada, mãe de
dois filhos, viciada em maconha talvez pelo vazio que leva como dona de casa,
inimiga de uma vizinha e do cachorro que passa a trama inteira aos latidos e
uivos. Relevante é a chegada do irmão de um dos seguranças que se oferecem para
trabalhar na vigilância noturna de uma rua do Recife, rua que é quase de
inteira propriedade de Francisco, um dono de engenho perto do fim. Relevante é
ainda a acentuação do som que domina todas as cenas. Embora seja a entrelinha,
a sutileza o que predomina a narrativa, não há silêncios em O som ao redor – apenas quando nos
momentos de passagem da primeira para segunda e da segunda para a terceira
parte, em que o filme é propositalmente cortado, como se demarcando o fim de
uma narrativa para o princípio de outra.
E justo por esta razão a aparente leveza do filme não passa
disso: de aparência. O som ao redor
dói nos nervos, porque ficamos sempre à espera de que algo muito trágico irá
acontecer. O som tem grande culpa nesse nível tensão. É uma trama que não privilegia
o espetáculo ou o estardalhaço; tem humor, na medida certa; tem tudo, na medida
certa. Até a escolha de atores não tão conhecidos (boa parte) no universo das
artes visuais é certa. Vale muito ver. E quem já viu, vale rever.
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