o nosso reino, de valter hugo mãe
Por Pedro Fernandes
Edição brasileira de o nosso reino - romance de estreia de Valter Hugo Mãe |
O livro chegou ao Brasil depois de o remorso de baltazar serapião. Mas, é o primeiro na tábua bibliográfica
do escritor, que antes, só havia trilhado pelo território dos livros
infantis e com a poesia, formas que – acredito – não serão abandonadas no correr da obra ou mesmo são retrabalhadas no âmbito do projeto ficcional que designamos como romanesco. Aliás, foi com o último gênero que valter hugo mãe –
que até bem pouco tempo preferiu se assinar assim numa referência ao conjunto
inicial de sua obra, integralmente grafada com minúsculas – chegou ao Brasil. Muito antes de chegar às duas grandes editoras que o levaram a ser popular por
aqui, já circulava uma antologia desenhada para a Thesaurus Editora com o título
de mil e setenta e um poemas e outra, com recolha de poemas seus editados em Portugal, publicada pela Oficinal Raquel, Portugal, 0, livros que certamente não estão na lista dos de grande conhecimento do público com a grande parte de seus
romances.
Com a chegada de o
apocalipse dos trabalhadores, último romance seu editado no Brasil, os
leitores têm uma amostra quase completa da escrita de Mãe. Pelo menos dos
romances, uma vez que os livros de poesia restam-nos os poucos poemas das antologias citadas,
e os infantis ainda não se tem uma previsão para quando chegarão. Ainda em junho
de 2011, quando de posse de o remorso
de baltazar serapião, então editado pela Editora 34, ficou em suspense aqui
no blog que comentássemos sobre essa obra e outras do escritor. O tempo de
espera findou. Com a leitura de o nosso
reino está prometido o comentário para todos os livros do escritor editados
no Brasil, inclusive as antologias mil e
setenta e um poemas e Portugal, 0 que, para sermos justos, deveríamos começar por elas. A força
do romance, entretanto, se interpôs. Não apenas pelo próprio poder da prosa em
merecer certa facilidade para o domínio da crítica, mas porque é através dela
que Valter Hugo Mãe é mais reconhecido dentro e fora do Brasil.
Muito embora não devemos dispensar o que a crítica reiteradas
vezes definiu acerca de sua obra como marcadamente invadida pelos laivos da poesia,
constante que parece se firmar na prosa contemporânea. E por uma razão muito
justa: é notório que o romance tem, cada vez mais, sido reduzido em extensão – parece que falta fôlego
aos escritores (ou as leitores) contemporâneos para o grande romance. Na literatura portuguesa, entre os reconhecidos pela crítica, contam-se nos dedos os escritores afeitos aos catataus. António Lobo Antunes, que já escreveu
grandes romances, tem ido pelos mais breves; José Saramago findou também com pequenos romances.
Atribui-se a isso, a competitividade com outros meios e com a rapidez de um tempo que nos roubou a capacidade de concentração e da reflexão demorada exigida por romances mais
extensos. É caro ter de nos abandonar por uma hora que seja da vida para além
da que já temos no mundo real; além da real, há uma virtual se interpõe com
grande força. Há ainda a força do mercado editorial a que o escritor está submetido
que lhe cobra – além da badalação nas inúmeras feiras e festivais mundo a fora,
totalmente dissonante do trabalho recluso do escritor – pelo menos um
importante livro por ano. E no fim de tudo o avanço das outras formas de
leitura. O digital que vai de ponta a ponta circundando tudo é favorável à
narrativa curta. E há outra série de questões que, como se vê, favorecem
que a narrativa esteja cada vez mais limitada na sua extensão. Tudo isso é questionável e não é uma leitura cerra do fenômeno. Apenas um devaneio em torno das insubordinações da prosa e da fluidez das formas literárias. Ao se fechar, o romance busca força noutros espaços a fim de garantir outras expansões; e o da poesia tem lhe
servido bem.
***
Narrado em primeira pessoa pela ótica de um menino de oito
anos, talvez por influência das narrativas infantis escritas anteriormente, nosso reino é um romance de tom
genesíaco – às avessas, é bem verdade, que enquanto no Gênesis tudo está em
formação, aqui tudo parece indo para o fim. Não chega a ser uma narrativa
sobre o desencanto do mundo porque este garoto, o benjamim, tem uma crença tão violenta
na existência que é mesmo capaz de superar todos os traumas possíveis que
esteja ao alcance.
E qual trauma é maior que a própria a morte? Uma tema que atravessa essa personagem e o romance: benjamim é
sobrevivente de um acidente que poderia ter lhe custado a vida e próximo dos
vários suicidas que se atiraram do barranco onde ele se acidentou. Aí, o rosário de
tragédias beira ao infinito. Primeiro, a morte dos avós; depois, a do primo ainda
bebê, única criança que aparecera no vilarejo em que vive, e que é símbolo
de renovação de um lugar em vias de ser soterrado das vistas do mundo externo; mais, o
desaparecimento do pai alcoólatra cujo único prazer era surrar a mãe e a ele; depois,
a casa que de velha não resiste às chuvas e desaba por sobre os dois irmãos; e,
por fim, o suicídio da mãe, uma das que se atiram barranco abaixo. Isso para
citar apenas os de seu círculo familiar.
Quando nos referimos ao caso de a vila onde benjamim vive
ser esquecida dos olhos do mundo, é porque estamos num desses vilarejos do
interior de Portugal, no período da ditadura salazarista, cujo único atrativo
para uma criança como a personagem, é ir à praia com os amigos – manuel é o
mais presente, mas há também a germana, misto de primeiro amor – ver os navios
que se movem tal qual minhocas na terra, ir à escola ou à casa dos parentes. No
mais, além desse aparelhamento das cortinas de ferro, que representa qualquer
regime ditatorial que mesmo não tendo aí o alcance que tem, por exemplo, numa
Lisboa, centro do poder, ainda mostra suas faces de outra maneira, como pelo fechamento
da religião – imperativo a circular todo o romance. O padre filipe incorpora
mesmo a figura do superior, a quem todos devem respeito. E exemplo marcante no
romance é a constante de crucifixos espalhados pelas paredes da casa de benjamim,
cada um a servir a um morador da residência. Num espaço assim, totalmente
invadido por um silenciamento que chega a gritar, a única alternativa para uma
criança é o devaneio, a imaginação, primeiro, como sublimação do silêncio, segundo, como resistência criativa frente ao lado trágico da existência.
Logo cedo, benjamim se deixa levar por uma necessidade inerente
a todo homem, mas que costuma se manifestar com maior intensidade em situações como
a que ele vivencia: a transcendência. Como alternativa, agarra-se ao divino e
vai construindo para si um culto que se distancia do sentenciado pela igreja. benjamim está entre o limite de deus e do diabo. Se para ele, tudo que busca fazer, é se
afastar do lado obtuso das coisas – marcadamente representado na figura do
homem mais triste do mundo, figura imaginária que está sempre rondando o vilarejo
por toda parte como se fosse a própria morte – para a própria igreja, que lhe
vê como um menino dado à fantasias, benjamim é uma encarnação do mal. Esse entre-lugar
para onde a personagem é jogada transmutará o ambiente claustrofóbico onde vive
num espaço constantemente invadido pela beleza do milagre produzido pela fértil imaginação infantil
e pelo pesadelo e a loucura dos adultos.
A vivência de benjamim é, sem que saiba, a de luta contra a
opressão do mundo dos adultos, e uma tentativa de compreensão sobre a vida e os
mistérios que a cercam – não apenas o da morte que insiste em correr os quatro cantos
do vilarejo – mas, os sentimentos do amor, da compaixão, a sua descoberta sexual e do seu próprio lugar
no mundo. Nisso, vemos a grande inteligência de Mãe: o mundo infante não é
apenas recurso a ser explorado pelo autor adulto, mas é movimento a partir do qual o autor engendra a estética do romance fundado numa linguagem que é, no mínimo de dupla
face – ao dizer do mundo tal qual é insiste em dizer de um reino que corre às
escondidas, não visível ao olho comum. Ver é atitude sensível dada ao alcance apenas
dos que tem na imaginação sua fonte de especulação da existência. E esta é talvez a maior de todas as lições alcançadas pelo leitor que, ao ligar-se diretamente ao pequeno benjamim é capaz também de transcender para encontrar em si a criança perdida no adulto que nos tornamos, afinal, boa parte das inquietações nascidas nesse período serão levadas adiante para toda vida.
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