O mestre, de Paul Thomas Anderson
Por Pedro Fernandes
Tive de revisar reiteradamente uma opinião que se formava
enquanto eu via O mestre: não é este
um filme injustiçado tal e qual andaram pintando certos lances da crítica
cinematográfica. Ou mesmo alimentando uma pergunta: o que tem nesse filme que
faz dele um trabalho quase esquecido no âmbito da Academia de Cinema? Dos três
prêmios que concorria no Oscar 2013 – Melhor Ator, Ator Coadjuvante, e Atriz Coadjuvante – o
filme de Paul Thomas Anderson não levou nenhum. O fato é que minha opinião não
se altera diante da pergunta e da constatação dos não prêmios. Não houve
injustiças. Pelo menos na minha reduzida visão. Isso não quer dizer que o filme
se perca ou não seja coisa de se dar atenção.
Do contrário. Trata-se de um rico trabalho que merece – a
quem tiver oportunidade – uma revisão; há determinadas nuances que passam
despercebidas a uma primeira visão. O contexto da narrativa é o surgimento num
Estados Unidos de indivíduos solapados pela guerra de uma seita que reúne um
campo vasto de elementos da ciência, numa necessidade mista de agregá-los aos da experiência religiosa. Fundada no início da década de 1950 e chamada de
Cientologia, é bom que antecipemos dizer não ser este um filme sobre a história
da seita ou sobre a história de seu fundador. Tais possibilidades passarão pela
nossa frente, mas logo cairá em desuso quando descobrirmo-nos num vazio que não
aponta nem para uma concordância sobre os acontecimentos aí desenvolvidos
tampouco para uma discordância. Isto é, em momento algum o diretor polemiza
sobre uma situação que já é de natureza polêmica. O telespectador ficará à
vontade para ir às conclusões individualmente.
Tanto que o ponto de vista do narrador acompanha desde o
início não “o mestre”, Lancaster Dodd, que só se apresenta quase vinte minutos
depois da abertura da narrativa, mas o desajustado Freddie Quell, um
recém-retornado da Segunda Guerra Mundial, que, sujeito apátrida, estará em
busca constante por um objetivo de vida e por seu lugar no país natal. Freddie encarna o indivíduo desprovido
da razão; preso num trauma como é todo aquele que experiencia uma guerra,
incapaz de se relacionar socialmente senão pelo álcool e pela sede
incontrolável no sexo; é o encontro – forjado ao acaso – com Lancaster que dará
mostras do andamento da Cientologia. No mais, a certa altura do filme é o próprio Dodd que sai de cena e daí em diante restará o Freddie para um curto reencontro no fim de tudo.
Por acompanhar o lugar desajustado de Freddie, a trama do
filme parece ficar suspensa, sem rumo por vários momentos. Impressão enganosa
que quer produzir no telespectador o modo como a personagem vê e se relaciona
com o mundo externo. E o encontro com “o mestre” só irá acentuar ainda mais
essa característica de Freddie, mesmo que em alguns momentos demos com situações
tão em sintonia entre os dois que ficamos cá pensando qual deles realmente pode
ser tratado por desajustado, afinal o prestígio de Lancaster que a condição aparante que o define acima da de Freddie, por exemplo, será posta em
questão em várias ocasiões da trama.
A relação que Freddie estabelece com ele não é a dos
aproveitadores baratos que vê num grande visionário a oportunidade de lhe
usurpar. Não. Cria-se a partir dele, entre os dois uma relação de cumplicidade:
Freddie tem um respeito quase que paterno por Lancaster embora Lancaster tenha
nele apenas a figura de uma cobaia na medida certa para suas experiências.
Freddie torna-se escravo de um ego desmedido, que cobra o centro das atenções
de todos, que não hesita no silenciamento a qualquer custo quando tem seus
interesses postos em questão; e seu discípulo capta bem esse comportamento
porque vem justamente de um lugar da não contrariedade, em que o contrassenso é
motivo a se pagar com a própria vida.
O filme aposta na relação díspar assumida entre Freddie e
Lancaster e o resultado é uma montanha russa de questões: o senso e o dissenso,
a razão e a loucura, o amor e o ódio, o líder e a cobaia, o criador e a
selvagem criatura. Sempre dois pares de visão, dois lugares comportamentais, que produz uma narrativa ambígua,
entre a fúria e paz, entre a paz e a violência. Da relação de opostos – um
cheio de certezas e outro perdido – o que há além da própria seita que faz a
relação dos dois alcançar o limite do abraço rolado na grama, ou do bebericado
juntos, ou da defesa de um pelo outro até o fim quando todos da família estão de
costas para Freddie?
O filme não explicita, mas deixa em aberto a
possibilidade da relação amorosa entre mestre e discípulo; ou ninguém terá
reparado nas crises de ciúmes que corroem a mulher do líder que se esforça ao limite para
não perder o controle do marido? Ou ainda, na cena em que a incapacidade sexual
de Lancaster com a mulher faz ela ter a ação de ódio e nojo em masturbá-lo? Ou mais ainda: qual é a do olhar intenso entre os dois? Apenas um
espelhamento – a do domesticador e a domesticado? Esse mistério encoberto e só
sugerido ao longo do filme está para um ponto de cumplicidade plantada pelo
diretor aos seus telespectadores. E faz de O
mestre um jogo para não piscar os olhos.
Fora a relação conturbada que a seita alcançou quando do seu
auge entre pessoas de Hollywood, vê-se que o filme de Anderson é uma distopia
do modus vivendi estadunidense. Ou
seja, vai à contracorrente do
espírito de patriotismo que se forjou ao longo dos anos no cinema produzido nos
Estados Unidos e somente aperfeiçoado desde sempre. Os dois personagens
incorporam o lugar do fracasso que nunca os estadunidenses conseguiram admitir
publicamente. Aí está duas das razões pelas quais é melhor calar que bajular com estatuetas.
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