De inéditos e ineditismos*
Os da nova geração de leitores já terão se acostumado com
essa moda que é a de remexer arquivos esquecidos pelo tempo a fim de achar
entre os papéis – e são muitos – deixados por um escritor um texto qualquer que
dê brecha para uma publicação inédita e de preferência surpreendente, cheia de
revelações a ponto de até mudar determinados conceitos acerca dos já
fossilizados. Tudo – rabiscos, garatujas, desenhos – se publica e é aceito pela
crítica fabricada como grandes acontecimentos literários.
Estou me referindo aos casos em que o autor já morto – e em
alguns a obra até já se encontra em domínio público – que uma decisão do tipo,
isto é, tornar público aquilo que ele escondeu por toda uma vida ou mesmo disse
não querer vê-lo publicado, fere determinadas instâncias que estão para além de
uma decisão individual ou praticada por uma equipe editorial. É evidente que nesse
processo o interesse artístico e estético é perdido para interesse pelo lucro
sobre o produto.
E para todos os lados se multiplicam casos; e para grande
maioria deles há os exageros. Não faz muito tempo que 3 mil exemplares do livro
Poemas nunca antes publicados de Caio
Fernando Abreu foram abortados uma semana antes de chegar às livrarias porque
um dos poemas aí apresentados como sendo do escritor era, na verdade, a letra
de uma música de Gilberto Gil. Por outro dia, o jornal espanhol El País editou inéditos de Mario
Benedetti que na verdade eram rabiscos para outros poemas do autor já publicados.
Na leva de exemplos fiquemos por aqui, mas sabendo que há ainda uma infinidade
de casos semelhantes.
Não sei se é o caso da Espanha, mas no Brasil há brechas na
lei de direitos autorais que permitem aos herdeiros tomarem determinadas
decisões, como as de publicação de originais. E é falho. Isso porque, sabendo
que escritor sempre escreve mais do que publica, sabe-se também que ele tem
seus critérios críticos e capacidade de seleção que não estão ao alcance, em
boa parte das vezes, dos herdeiros. Para uma situação do tipo, parece sensato
que a decisão do autor deva ser considerada um direito irrevogável; seja o
herdeiro quem seja, sua decisão é um direito literário e, sobretudo, moral e de
respeito à sua memória. Para aquelas situações que não envolvem o nome de
herdeiros, nem de instituições designadas pelo autor, talvez fosse justo a
existência, no âmbito da justiça, de fóruns especializados que pudessem
avaliar, por exemplo, a decisão de publicação. Em todo caso não se deve
acreditar que o simples fato de o autor não ter dado fim àquilo que não foi
publicado seja sempre uma interpretação direta de que deve ser feito uso
comercial; nem que deixado a um herdeiro responsável este tenha todo direito de
exploração do material.
E, por fim, além dos casos de publicação indevida, cumpre
pensar nas extravagâncias, como intervenção de terceiros sobre os textos –
reescritura de manuscritos com supressão ou acréscimo de parágrafos, como a formulação
de um desfecho para o texto, entre outras. Todas essas situações infringem
diretamente a escrita e o resultado não se constitui em trabalhos inéditos como
vão sendo propalados pela mídia. Pode ser que a intenção ou tema estejam ali
preservados, mas as intervenções, por si só, descaracterizam a originalidade do
texto e fazem dele o texto de outro autor. Estou aqui pensando naquela
personagem de Jorge Luis Borges no conto “Pierre Menard, o autor de Dom
Quixote” que se debruça na fatídica ideia de reescritura do romance de
Cervantes e, mesmo que sejam repetidas os pontos e as vírgulas, tudo à sua
imagem do texto original, já no fim não será o Dom Quixote de Cervantes, mas o de Pierre Menard.
Agora, fato é que, se isso fosse levado a sério talvez não
tivéssemos cá a imagem que temos, por exemplo, de escritores como Kafka. Mas
para que os casos de absurdos sejam freados, uma vez estarmos no auge dos ineditismos,
muita coisa há que ser revista. O direito de posse não pode continuar a ser
confundido com o direito de publicação e difusão comercial dos escritos.
Afinal, propriedade intelectual não se transmite por herança e muitos dos casos
em que envolvem dinheiro podem ser enquadrados como apropriação e exploração
indevida. É válido que estes escritos estejam acessíveis aos estudiosos e
leitores da obra do escritor, agora que sejam tornados produtos de venda sem o
consentimento do autor ou simplesmente pelo interesse financeiro de herdeiros,
não; o ideal é que, em última ocasião, seja dada a decisão a um fórum de
especialistas. Seja de que natureza for, um trabalho artístico não pode está
atrelado simplesmente às leis de mercado; como criação intelectual tem em sua
natureza outros valores e estes precisam ser preservados.
* texto publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato, em 3 de março de 2013, p.13.
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