Aquilino Ribeiro
No próximo dia 27 de
maio assinala a passagem de 50 anos da morte do escritor português Aquilino
Ribeiro. Considerado pela crítica de seu tempo e de sempre como um dos mais
fecundos romancistas do século XX, Aquilino ainda é um nome por se descobrir
entre os leitores brasileiros. O escritor que esteve por aqui entre março e
junho de 1952 quando recebeu homenagens da parte de escritores e artistas na
Academia Brasileira de Letras, instituição da qual foi sócio-correspondente.
Nesse período que esteve no país visitou
ainda as regiões Nordeste e o Centro-Oeste. Um mês depois chegou a ser condecorado com a Comenda do Cruzeiro do Sul
pelo governo brasileiro. Sete anos depois, Fernando Correia da Silva, escritor
conterrâneo de Aquilino, conseguiu que a editora paulista Anhambi publicasse Quando
os lobos uivam, obra pela qual o escritor
foi perseguido pelo Regime Salazarista e uma das motivadoras para sua vinda ao
Brasil. Mesmo tendo merecido atenção de
importantes estudiosos da literatura portuguesa no Brasil – lembro aqui do
livro Aquilino Ribeiro, da professora
Nelly Novaes Coelho que estudou a obra de estreia do escritor, Jardim das
tormentas, uma busca aos sites das
principais livrarias do país, entretanto, confirma o total apagamento da
presença do escritor para os lados de cá. Não é novidade. Se nem os de casa nós
temos conseguido lembrar, o que dizer dos que estão fora? Por aqui, vamos
fazendo nossa parte. A revista portuguesa Visão disponibilizou on-line no início do mês de março uma matéria sobre
Aquilino Ribeiro. Entramos em contato com Ana Margarida de Carvalho a
jornalista responsável pelo texto que prontamente nos respondeu da satisfação que
teria em ver esse material publicado num veículo como o Letras in.verso e
re.verso. O texto faz uma verdadeira
radiografia – no sentido mais autêntico da palavra – da biografia e da
geografia do escritor, justificando-se a cada paragem com excertos da própria
obra de Aquilino, completando assim o itinerário que também é bibliográfico.
Aquilino Ribeiro : A
árvore da vida
Foi o escritor de todos os superlativos. Chamaram-lhe
mestre, "o poderoso Aquilino", "um dos maiores prosadores da
língua portuguesa", "dos mais bem situados nas nossas estantes, de
Gil Vicente e Fernão Lopes a Vieira e Camilo", "figura de
encruzilhada cultural, entre o primitivismo rural e o amor gratuito da erudição
livresca", "de estilo assente na miúda reticulação das fibras que
conjuga um mundo recôndito de coisas vindas das retinas, dos tímpanos, das
papilas sensitivas à flor da pele e das mucosas"... e toda a adjetivação
se torna penosamente frouxa e pleonástica perante o autor de setenta títulos,
que viu na sua vida (sinuosa como no título do seu romance) um inesgotável
alforge para as suas aventuras literárias – e que o trazia sempre preso à
ilharga, cheio de campo e seiva e o bichedo das serranias beirãs lá dentro,
mesmo quando se viu citadino, "emigrado" em Lisboa, enjaulado em
calabouços (por duas vezes), cosmopolita, exilado em Paris (também por
duas vezes), e na Alemanha... Era um cidadão do mundo, mas as raízes da terra
nunca lhe largaram os tornozelos. Na sua obra cabe quase um século inteiro, com
as suas vezes e revezes. Na vida coube um romantismo aventuroso à Victor Hugo,
que sempre mostrava peito feito às tiranias e aos despotismos vários. Não se
vergava nem às sotainas da sua adolescência, nem aos ferrolhos das prisões, nem
a juízes, monarcas ou ditadores. E quantas vezes, nas suas lamúrias
maternais, ele escutara: "É um homem perdido!" E afinal... eis
a maestria de um escritor que talhava as frases num apuro de técnica e
perfeição, que trouxe o campo e os cumes mais ariscos à cidade, e em cada linha
destampou os cofres fortes das palavras, não as deixou lá ficar, embalsamadas,
no bafio do esquecimento. E resgatou-as, reinventou-as, completou-as, ressuscitou-as,
"com uma veracidade verônica, graças à perfeição de escrita alcançada nos
últimos livros, em que o seu barroquismo visceral se tornara num fio de luz de
simplicidade riquíssima – guia seguro por labirintos em que a treva adquiria o
depuramento de cristal" (José Gomes Ferreira). A acompanhar as cerimônias
oficiais (debates, conferências em Portugal e Paris – 19 de Março, 22 de Maio –,
visitas guiadas pelos lugares marcantes da sua vida, por Henrique Monteiro, na
Beira, e Mário Cláudio, no Minho – 20 e 21 de Abril –, segue-se um outro
itinerário pela seiva que também corria na circulação sanguínea de Aquilino, e
suas hastes, nódulos, troncos e ramificações.
Beira Alta
Aquilino Ribeiros nasceu, a 13 de Setembro de 1885, no
Carregal da Tabosa, concelho de Sernancelhe, no ano da morte de Victor Hugo e
em que se constrói o primeiro carro. Passa uma infância rústica e bucólica,
primeiro no Carregal e depois em Soutosa (concelho de Moimenta da Beira). Foi o
escritor que melhor desenhou com palavras a beira, suas paisagens, seus
bichedos, suas gentes, esses seres rudes que se arrastam na sombra pesada de
pedras negras, e seus modos de falar, lendas e costumes.
“Quando se passa à vista dessas serranias, perfiladas no
horizonte, que têm o seu quê das monticulações dos formigueiros, cheias de
povos, de passaredo, de bichesa humana e montesinha, toma-nos, da projecção da
nossa pequenez sobre a imensidade e o mistério da distância, um sentimento que
tanto pode ser de exaltar como de deprimir.” (Aquilino Ribeiro, In Geografia Sentimental)
"Pelo braço de estrada fora rompiam ranchos em
algazarra, bestas rinchonas caracolando e maltas de varapaus leva que leva. Lá
adiante, ao morrer da baixa, o melhor duma aldeia, harmónio fungando, cores a
bezerrar, avançava em animado passo de dança. Sozinhos, chegados um ao outro,
lá passavam dois casadinhos de fresco; bem se lhes via nos olhos muito mexidos
o regalo de se mostrar. Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu
braguês para a nuca, e éguas de alabarda com matronas de lenço de seda, peito
coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé. Para aguentar o passo,
outras mulheres tinham tirado as chinelas e com elas na mão, a par do
sombreiro, ou à cabeça sobre o xaile, desinhavam-se todas, tep, tep. E lá
seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa que o mês de Agosto
c'os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica
Senhora da Lapinha."(Aquilino Ribeiro, In Terras do Demo)
Um escritor confessa-se foi escrito em 1960, esteve para ser publicado em 1961, mas só veio a lume em 1974. No prefácio redigido por Mário Soares, o escritor define como uma importante obra "não só porque conta a sua vida, desde a expulsão, por falta de vocação, do Seminário de Évora, em que estudava, até aos seus primeiros aventurosos passos na Lisboa do século XX." |
Aos 17, anos, acabado o liceu em Lamego, os pais
fizeram-lhe uma guerra muda: queriam vê-lo no seminário, deixaram de lhe falar,
não lhe chocalhou mais no bolso um vintém, enviavam-lhe "um batalhão
estudado de razões e bons conselhos", as pessoas bem-pensantes da terra, o
alfaiate Albino e outros "intermezzos
de encomenda". Mas água mole, já se sabe, acabou por pisar o coração,
largar a namorada, e abalar para Viseu, estudar filosofia, "sem sequer
pedir a bênção da mãe". No seminário de Beja a "disciplina era
branda e não se esfolava os joelhos a rezar". Não lhe suportava o
sinistro badalo que o acordava entre quatro paredes frias. Nem os
seminaristas a zumbirem como colmeia na oração. Nem a sotaina ou o barrete. Nem
aquele degredo numa cidade "moirisca degenerada", cheia de
"nuvens de moscas zumbentes" que "cravejavam as mãos com seu
herpes gordo e movediço"... "Foi-se efetuando em mim o degelo da neve
pura que era ao tempo em matéria de fé". "Mas que andas tu aqui a
fazer? – perguntava dentro de mim D. Quixote; E para onde hás-de ir?,
contrapunha Sancho". Despediu-se para nunca mais, por completa
ausência de vocação.
"A sineta, enforcada em dois braços de ferro quase em
frente do meu quarto, ladrou a bom ladrar às seis e meia da manhã. Para mim que
não estava habituado àquela voz imperativa - a sineta toda paternal do Colégio
de Lamego há que mundos deixara de regular os meus hábitos- foi-me desagradável
como deve ser a do padre capelão que chega À cela do condenado à morte e lhe diz:
Meu Caro Amigo, o recurso foi denegado. Prepare-se para morrer." (Aquilino
Ribeiro, In Um escritor confessa-se)
Antiga Biblioteca
Nacional
Arredado e com gáudio da vida eclesiástica, desiludido do
jornalismo, excluída a pretensão a amanuense dos Caminhos de Ferro (ficou de fora
num concurso com mais de duzentos candidatos) – "pela primeira vez
reconheci o que significa no plano da vida prática mudar de rumo à procura dum
ofício longe daquele para que se vinha batendo sola" –, o jovem desiste do
panorama das mangas de alpaca, "recurvos sobre a banca de concurso a
versar os pontos mais metafísicos" e encontra refúgio entre os livros.
"Refugiei-me na literatura como num convento do Monte
Atos. Desde os primeiros anos do Colégio que tivera pronunciada tendência
para a especulação literária. Por agora volvia à leitura (...). Entrava para a
Biblioteca Nacional com o abrir do portão e era o último a largar. Nunca me
aconteceu adormecer sobre os livros como convidava aquela sala em abóboda,
firmada em aduelas de tijolo, verdadeira adega do espírito fradesco, com o
salitre tomístico colado aos muros, no ar a boiar ainda a mofeta inextinta dos
silogismos. Mas havia muitos que dormiam e ressonavam, sem escândalo para
ninguém, louvados sejam os leitores da Morgadinha dos Canaviais. Tão encharcado
andava eu de leituras que, involuntariamente, cheguei a falar como os heróis de
Camilo, prestando-se o facto um dia a franca chuchadeira dos amigos. Curei-me
do vernáculo nas relações com os meus patrícios sarcasticamente triviais, mas
não deixei de prosseguir na formação autodidáctica". (Aquilino Ribeiro, In
Um escritor confessa-se)
Lisboa
"Da Costa do Castelo e Graça sentia-se como que a
rajada sísmica no acto de varrer para a Baixa as agulhas estroncadas e os
arcaboiços rotos das igrejas e palácios. Raro esta e aquela silhueta - as
torres da Sé, as volutas brancas do Carmo, o corpanzil verde de D. José em cima
do cavalo (...), e os seus palacetes empoleirados nos altos do Torel -
quebravam a impressão de assombro que se recebia na varanda ante a floresta de
pedra das duas colinas. Se porém se dilatavam olhos até os planos remotos, para
lá da laguna dourada que orla o Terreiro do Paço, quer demorando-os mais longe
na seda azul, levemente crespa, das águas fluviais, quer no tracto de terra de
Outra Banda salpicado dos grandes malmequeres, Alfeite, Cacilhas, Barreiro, com
a Arrábida às espaldas, tão roxa que nem pintada, a vista repousava bêbada de
luz na confiança das confianças". (Aquilino Ribeiro, In Mónica)
"O Café era a Universidade e a antecâmara permanente da
revolução. Cada um tinha os seus clientes, agrupados perla cor das ideias e da
gravata: republicanos, aficionados, poetas, batoteiros, e seria milagre que
acampasse por ali um só que não acusasse estigma. Desconhecido que aparecesse
era tal um moiro na costa. De mesa para mesa voava a palavra de passe: Cuidado
que pode ser bufo!" (Aquilino Ribeiro, In Um escritor confessa-se)
Parque Eduardo VII
Um escritor que nunca perdeu as graças do campo, nem traiu
as suas origens e exultava, recebia, de braços e pulmões, abertos a sua aldeia
de infância, o seu fiel Argos, mastim coelheiro, ou então tinha de se contentar
com um retalho verde, simulacro de serra empacotada, encravada na cidade.
"Eu reintegrava-me no meio que derivara, e nessa operação sentia a delícia
das delícias. Era como o lagarto que depois de hibernar, se espreguiça ao
sol".
"Nas belas manhãs eu gostava de ir sozinho Avenida
Fora, trepar ao bocado de sertão que era o Parque pouco antes baptizado de
Eduardo VII, onde via coelhos a correr, Pássaros de tanguinho no bico em vias
de construir o ninho. Ali a natureza era a autêntica madre, no seu plano
primitivo, ou quase. Lá estava no alto uma casa de granja, quadrada e com telha
moura, ares de "monte" alentejano, desdobrada em abegoaria e
alpendres, o Casal Ventoso, onde se vendia um copo de leite, se nos apetecia
este mimo rural. E eu voltava aos meus romancistas, arejado dos pulmões, os
olhos recreados de todos os belos painéis da geórgica que se oferecia naquele
bocado de serra e frágua, inacessível porém então às gâmbias alfacinhas".
"Que regalo não é mudar de pele como as cobras, estes
inofensivos répteis dos campos que concitam a aversão atávica do homem, e
despir o que se traz da cidade, traje, engravatamento, leituras, presunções de
civilizado, e entregar-se o filho pródigo ao seio da natureza como um mamoto
aos úberes da vaca mãe, ou chapinhar, açoutar a água de pés e mãos num dos
poços da ribeira, adormecidos ao coaxar das rãs?!" (Aquilino Ribeiro, In Um autor confessa-se)
Rua do Carrião
Em 1907, Aquilino adere à Carbonária. Durante a manipulação
de cargas de TNT "dois caixotitos", dá-se uma violenta explosão no
quarto que habita. Sai fisicamente incólume, ao contrário de dois companheiros,
mas foi preso na sequência de tão indiscreta algazarra. Viu-se diante do
célebre juiz Veiga, "o grande papão dos republicanos, o terror dos
anarquistas, o alcoviteiro do rei, a divindade colérica e tutelar que pairava
sobre a Monarquia e as instituições, armada de trindente e coriscos".
Afinal, em vez de um Javert eriçado à Victor Hugo, saiu-lhe um avozinho,
"um bom velhote, o seu tanto surdo, que punha a mão por detrás do pavilhão
da orelha para ouvir melhor e me pedia o favor de falar mais alto, como um avô
ao neto, falas brandas edulcoradas de piedade e mansetude".
"A parte culta do País, na maioria, estava ganha à
ideia republicana. Os propagandistas tinham feito obra sobretudo de demolição,
e frutuosa como fora, só os censuravam os despeitados. Para se fazer um
edifício novo onde só há ruínas e pardeiros, antes de mais nada está indicado
que se deite abaixo e se removam os escombros. A casa lusitana estava velha e
carcomida, e os mais culpados eram os reis. Primeiro os absolutos, em tanto que
senhores de corpos e almas, depois os constitucionais (...) Os monarcas
portugueses, todo esse fastidioso chorrilho de paranóicos, epilépticos e
comições de orelha e tromba de cerdo, a cada um dos quais, uma vez defunto, o
mais travadinho dos historiadores acorria a pôr o chinó dum cognome banaboia,
afectos a ver a sua inútil pessoa divinizada e indiscutida à testa do rebanho,
supondo por hipótese que eram transferidos para a vida civil, tenha-se por
garantido que não davam uma para a caixa no que quer que fosse". (Aquilino
Ribeiro In Um escritor confessa-se)
Esquadra de Caminho
Novo
Foi parar a um chilindró subterrâneo, com bruta fechadura e
um estrado de pinho, se não queria alongar o corpo no frio do pavimento.
"Os cães tinham melhor!". Deu-lhe a angustiosa impressão "das
terríveis idades bárbaras": casamatas, Bastilha, Torre de Nesle, S. Julião
da Barra, Junqueira, em que apodreceu muito filho de boa mãe". E um bruto
ferrolho que não se cansava de estudar e inspecionar – "aquela bisarma era
de facto para causar calafrios". Ao fim de um mês, com a ajuda da gravata
de seda, de varetas improvisadas, muito engenho e arte, conseguiu desconjuntar
a fechadura, parafuso a parafuso. Gorada a primeira tentativa de evasão, não
falharia a segunda. E da outra vez que o meteram dentro de grades, em 1928,
também não se ficou à espera que lhe abrissem a porta.
"A suprema aspiração do cativo, que não sabe o que o
espera e ama a liberdade acima de tudo é evadir-se. Os pássaros metem a cabeça,
alucinadamente, pelas grades, segundo o instinto que lhe é mais
imperioso. Fá-lo a galinha, que é um animal aviltrado, quando a mudam de
capoeira. Compreende-se que me ocipasse desde logo com o plano de fuga, desenvolvendo
a minúcia e porfia que um charadista põe a solucionar o seu logogrifo". (Aquilino
Ribeiro, In Um escritor confessa-se)
Cada da 1ª edição do livro de contos Jardim das Tormentas 1913. Imagem: Revista Colóquio/Letras. |
Universidade de Sobornne,
Paris
Depois de se evadir, ficou algum tempo em Lisboa a cometer
imprudências, nas barbas da polícia. O pai veio em seu auxílio, a reunir
migalhas. Partiu para o exílio, na manhã de 1 de Junho de 1908, apanhou o
Sud-Express, no Entrocamento, de valise na mão: "Ao Diabo a sisudez e o
medo da vida!". Em Paris residiu seis anos, em convivência com
artistas e escritores. Regressou com a proclamação da República mas retornou à
Sorbonne, cursando letras e filosofia. Aí conhece a primeira mulher, a alemã
Grete Tiedermann. Passa por Berlim e Parchin, instala-se em Paris, onde em 1913
escreve o seu primeiro livro de contos, Jardim das Tormentas.
"O certo é que Paris, o Paris dos rapins, das
porteiras, do beijo à boca farta, da lâmpada de álcool para aquecer a refeição
pronta da charcuterie, do modelo pindérico e desnalgado, do cocuage dos amigos
e pelos amigos, do Bal Bullier e do Bal des Quat'z Arts, dum dia de fartura e
de seis de lazeira, da tasca na fraterna comensalidade de galdérias, rufiões,
sábios, niilistas e poetas, tornara-se-lhe imprescindível como a casca do
caracol". (Aquilino Ribeiro, In Por
obra e graça)
Romarigães, Minho
Aquela que é considerada, incontestavelmente, a obra-prima
do mestre Aquilino (A casa Grande de
Romarigães), tem este incipid
assombroso, de um pinhão que cai e dele se faz árvore e à sombra desta se
construirá a casa que albergará três séculos de história portuguesa e gerações
de personagens; uma prosa muito aquiliana, erudita mas eivada de regionalismo e
construções desusadas que o escritor em boa hora não deixou embalsamar.
Publicada em 1957, o escritor chamou-lhe crônica romanceada, a esta sucessão de
paixões, desamores, invasões, insanidades e outros desvarios das gentes,
debaixo do mesmo teto, ao abrigo da mesma árvore. E à floresta hão de acorrer
insetos, plantas, pássaros, lobos, javalis... A casa, ou o que dela resta,
ainda lá está, em Paredes de Coura, no Minho e foi morada de Bernardino Machado
(3º e 8ª presidente da República) e também do próprio escritor que casara com a
filha de Bernardino, em 1929, quando ambos se encontravam em Paris, no exílio.
"O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou
na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor,
alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora do seu decúbito, que se agitou
molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua
tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vezo pinhão, como um
pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, libertou-se da cela e pulou no espaço.
Que paraquedista!" (Aquilino Ribeiro, In A casa grande de Romarigães).
Tribunal Da Boa Hora
Já com um prestígio muito ancorado na sua obra e na sua
personalidade (aliás já tornado sócio da Academia de Ciências de Lisboa), o
escritor publica o famoso romance Quando
os lobos uivam, duplamente célebre pelo conteúdo e pelo inacreditável
processo salazarento que se lhe moveu. É pronunciado como arguido pelo crime de
abuso de liberdade de expressão, sujeito ao vexame dos interrogatórios, à
afronta das mesquinhas diligências processuais . Candidato a Nobel e apoiado
massivamente por um grupo de intelectuais e figuras públicas indignados, o
processo é arquivado, a ver se salvava a face o bolorento regime. No
Brasil já saía um livro em defesa de Aquilino: Quando os Lobos Julgam, a Justiça Uiva. Escritor sem medo é, aos 74
anos, um dos promotores da campanha de outro homem sem medo, o general Humberto
Delgado .
"Justo Rodrigues (presidente da Junta) – Já disse, e
voltarei a dizê-lo na Câmara segunda-feira: a serra é nossa e muito nossa.
Queremo-la assim, estamos no nosso direito. Desta forma é que nos faz arranjo.
Os de Lisboa querem-na coberta de pinhal...? Semeiem pinhal nos parques e
jardins onde têm empedrado e relva só pra vista.
Nacomba – Vai haver sangue, não haja dúvida – vai, vai! Se o
governo teima em meter aqui a pata, temo-la tramada!
Dr. Rigoberto – A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não
é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram
quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como
quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o
vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco mil, dez mil, têm
tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores da comunidade. Se os
sacrificam, cometem uma acção bárbara, e eles estão no direito de se levantar
por todos os meios contra tal política.
Louvadeus – Quando esta aldeia estiver mais adiantada, civilizada, tenha luz
eléctrica, telefone, escolas dignas, hospital, água potável, (então) fale o
estado em levar por diante este número do programa. Até lá, com fome, tamancos
de amieiro e barbárie em toda a linha, deixem-nos o que temos. Não nos queiram
ditar a vossa lei pela bala e a baioneta.
(Interrompe) Olhe que Nós também não vamos a Lisboa cobiçar os relvados, que lá
há, para pastagem das nossas vacas.” (Aquilino Ribeiro, In Quando os lobos uivam)
Comentários
Excelente composição.