A cortina, de Milan Kundera
Por Pedro Fernandes
Quando li pela primeira vez A arte do romance, de Milan Kundera, a única
coisa que sabia quanto à produção literária do escritor era A insustentável leveza do ser, isso porque
não muito distante do tempo eu assistira a adaptação fidelíssima de Philip
Kaufman – o “fidelíssima” é por conta do que me contaram quem já fez tanto a
leitura como a visão do filme. Desde então, tornou-se um livro que tenho
comigo sempre. Em dois parágrafos que redigi para este blog em 2010, eu falei
um dos motivos pelos quais esse livro ganhou esse status: é uma obra escrita
por quem melhor pode falar do romance, um romancista. Apesar de que minha vocação
cada vez mais se defina pelo caminho da opinião crítica em torno de
determinados artefatos artísticos, não tenho a ilusão rasteira de que só quem
pode falar com precisão sobre arte seja o crítico.
O lugar do romancista
parece-me conveniente, por exemplo, porque todo escritor – no sentido considerável
do termo – é tomado da mesma inquietação perante o mundo e as coisas. Tem, portanto,
um conhecimento que capta a gênese de determinados lugares ou forças temáticas no
seu universo e, por isso, tem melhor precisão de apontá-los. Estou considerando
que o romancista não é um leitor simples, mas um sofisticado leitor.
No caso de um deles, como o
Milan Kundera, se debruçar para o comentário sobre aquilo que lê há um passo
além da mera leitura de determinados temas e inquietações por ele visualizados
na obra alheia; há sim um grande caminho de migalhas que se elabora como
possibilidade para compreensão da sua própria obra. Que temas, que obsessões,
ou mesmo como determinados assuntos lhe chegaram a ponto de fermentar num
romance, tudo é útil na hora de destrinçar o produto do labor artístico. Para os
não-estudiosos de sua obra, além da visão acerca da vivência do escritor com
suas leituras, é também a oportunidade de, como num diário, bisbilhotar quais
leituras são as que melhor ele tem feito antes de ser o escritor que é.
É evidente que, para o caso
aqui, irei desprezar todos esses lugares para ser breve num ponto: quais as
minhas impressões acerca de A cortina,
conjunto de ensaios traduzidos e publicados em 2006 pela Companhia das Letras,
editora que tem dado a conhecer a obra do escritor tcheco para os brasileiros. Seguindo
a mística do número 7 já comentada pelo próprio Kundera em A arte do romance, o livro é apresentado em sete partes que nomeia
também o subtítulo – “ensaio em sete partes”: “Consciência da continuidade”, “Die
Weltliteratur”, “Adentrar a alma das coisas”, “O que é um romancista?”, “Estética
e existência”, “A cortina rasgada”, “O romance, a memória e o esquecimento”. Cada
uma das partes é dominada por uma fração muito variada de leituras, que vai
desde o nascimento do romance, a partir de nomes como Rabelais e Cervantes à
literatura contemporânea, a partir de nomes como Kafka, Musil, Broch, Gabriel
García Márquez, entre outros.
O assunto em A cortina não pode ser outro senão as variações
do romance; desenvolve-se aí um itinerário não-linear cuja novidade é
compreender, num tempo do fim contínuo em que o romance parece ter se degradado
cada vez mais quanto ao seu papel ocupado na sociedade, qual é afinal o poder
da arte de narrar. Kundera vem reforçar a tese já perseguida nos ensaios
anteriores d’A arte do romance: a
literatura foi e ainda é o meio mais conveniente pelo qual o homem pode pensar sobre si, a existência e o
mundo.
Ao desnudar-se refletindo sobre o seu ofício, o de romancista, Kundera
produz um espaço muito particular na arte da crítica – destituí-la da empolação
erudita pela simplicidade criativa, conservando a linguagem como um instrumento
capaz de aproximar o homem dela própria. A quem pensa ser isso um exercício
simples, engana-se: é como se o romancista de antes não tivesse de se esquecer
da sua função, mas com agora com outro interesse, o de levantar e suspender teses.
O resultado é um movimento dialético no qual o ensaísta não elege um ou outro
caminho, mas coloca um ponto de interrogação sobre determinados motivos do
romance. E deixa, ao fim, reticências que apontam gostos para buscar a leitura dos
livros por ele comentados.
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