Os Lusíadas, de Camões
Detalhe do frontispício de Os lusíadas, edição de 1572. Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal. |
Como todo clássico é uma experiência única, encontrar-se
pelo caminho das leituras com este texto de Camões não será diferente. Afinal, Os lusíadas é a obra que mais repercute
nas literaturas de língua portuguesa. Basta pensar aqui alguns títulos de
alguns dos mais conceituados escritores para ter uma clara noção e logo atribuir
razão a esse entendimento. Do lado de lá do Atlântico, a epopeia de Camões é
eco forte na obra de Fernando Pessoa, que repetiu a proeza de canto ao povo
português no seu Mensagem; José
Saramago terá feito o mesmo com A jangada
de pedra ou com a intertextualização de episódios e citações diretas do
clássico camoniano em boa parte de seus romances. Do lado cá, ecoa Camões por
Carlos Drummond de Andrade se formos reparar o episódico poema “A máquina do
mundo”, do livro Claro enigma. E se
formos sair à cata, daremos, com certeza, com novos exemplos. Há ainda as
relações interáreas aí desenhadas que será lugar para toda boa parte dos
lugares ocupados pela literatura posterior: seja a relação ficção-realidade,
literatura-história, seja o plano alegórico, isto é, em duas palavras, dizer
uma coisa para significar outra, seja ainda a visão desconcertante da ideia de status nacional.
Acerca de uma dessas relações, pensemos sobre o pacto ficção-realidade.
Já boa parte da crítica terá considerado Camões como poeta pouco imaginativo,
principalmente em Os lusíadas. Não apenas
porque parte da epopeia é mera transmutação da história oficial em prosa para o
verso, mas porque a viagem descrita de Vasco da Gama foi vivida e sentida na
pele pelo próprio poeta. Grande parcela da epopeia foi escrita na distância da
pátria; Camões foi, a mando do rei, exilado por mais de sessenta anos na Índia
e, portanto, tudo o que pode representar a um marinheiro de primeira viagem
está aí experienciado pela palavra. O saudosismo impregnado ao longo poema não apenas
trabalho estético de quem está a mais de setenta anos de distância dos feitos
portugueses, é também o canto de quem está a muita distância de sua pátria.
A grande capacidade do poeta português foi conceber essa transmutação
e reconhecer a epopeia clássica de Homero como lugar de laboração poética.
Talvez devamos admitir que Os lusíadas
talvez seja um dos primeiros casos de palimpsesto – a nova escrita nascida do
trabalho sobreposição da escrita antiga. O resultado é um texto único que
resiste ao mais de quatrocentos anos desde que foi concebido por volta de 1572.
E essa resistência não se dá apenas pelo ato de heroicização portuguesa conforme
sempre os compêndios literários tenham repetido incansavelmente ao longo desses
anos todos. É que o texto camoniano deve ser admitido também como um dos
primeiros exercícios de dialética. Ao passo em que é elaborado um canto heroico
ao povo português – o herói coletivo da obra – também é elaborado um canto de
denúncia a opressão padecida por este mesmo povo em nome do heroísmo ou da ambição
pela conquista. Há, portanto um elemento social que intervém na epopeia,
destoando, portanto, do lugar da Odisseia,
por exemplo, em que o louvor ao herói Ulisses é matéria única do princípio ao
fim do percurso.
Outro elemento que difere do texto de Homero diz respeito a
proposição do aedo. Enquanto aqui poucos são versos da boca do próprio Ulisses
e há apenas uma voz que orquestra do alto todos os movimentos encetados pelas
personagens, em Os lusíadas pode-se
perceber uma via contrária: boa parte do poema se sustenta pela voz de Vasco da
Gama, quando desde o Canto II este expõe a história portuguesa e sua política
de expansão marítima.
A história de publicação do livro terá sido mais uma das
muitas controvérsias que gira em torno da figura mais mitológica que história
do Camões. Redimir-se do degredo pela erudição e por um poema que honra a
linhagem imperial a ponto de garantir a proteção do rei para impressão da
epopeia é feito pequeno se formos pensar como um livro com o episódico espetáculo de liberação do corpo
– Vasco e os marinheiros na Ilha dos Amores – passa à vista dos censores do
Tribunal do Santo Ofício. A resposta será variada e motivo para outra conversa.
Que fique somente registrada a grandiosidade do poema e a necessidade dos de
língua portuguesa, sobretudo, terem seu conhecimento: é que para entender
certos rumos do que se passa hoje, na literatura contemporânea, há sempre de
apostar em textos como estes.
Ligações a esta post
>>> Os lusíadas on-line: matéria sobre a disponibilização do livro de Camões em edições fac-símile.
>>> Ouvir Os lusíadas. Proposta de Luís Maffei.
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