Os 50 anos de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar
Julio Cortázar em 1963, mesmo ano em que publicou O jogo da amarelinha. Foto: Arquivo do Jornal Clarín. |
Há uma parcela considerável da crítica literária que não tem
em Julio Cortázar a imagem de um grande escritor no sentido extremo da palavra
tal como é Jorge Luís Borges, Macedonio Fernández ou outro nome de igual envergadura
da literatura produzida na América Latina. Natural, no mesmo nível em que se
faz considerações do tipo ao escritor argentino também se faz a nomes como José
Saramago, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade. Tenho lido. Duas linhas nascem
aqui: uma sobre o entendimento do termo ‘grandiosidade’ e que considera a
necessidade de renovação plena e constante de um escritor; assim, se um escritor constrói um
estilo e não opera grandes alterações nele ao longo de sua produção literária, não
se pode ‘taxá-lo’ de importante nome da literatura de um país; e a outra linha é
ingênua, tem a ver com gosto pessoal e, assim, se determinado escritor não lhe ‘conquistou’
logo na primeira leitura a generalização vigora. Fato é que se Julio Cortázar,
julgado pela primeira linha, não terá sido grande escritor por ‘incapacidade de
ampliar seu estilo’, deve ser, ainda assim, considerado um importante nome para
a literatura produzida à época em que aparece no seu país.
E um de seus trabalhos chega a casa dos 50 anos agora em
2013. Trata-se de Rayuela, livro que
pelo seu formato, por seu vanguardismo e pela forma como mescla o surrealismo
francês dos anos 20 com o realismo mágico do boom latino-americano se
transformou muito rapidamente em um clássico. A edição brasileira chegou quase
na metade dessa idade que o livro faz agora sob o título de O jogo da amarelinha e só se encontra
hoje em sebos com preço razoável. Perdão aos críticos que não concebem na mesma
linha o nome de Cortázar junto ao de Borges ou Macedonio Fernández, mas junto Juan
Mendoza, crítico da Revista Ñ e de
onde traduzo boa parte de um texto seu aí publicado para estas notas ora
redigidas, Rayuela é um romance que
traz pelo seu vanguardismo algo de Macedonio Fernández e incorpora o contexto
de onde foi produzido, o ritmo do rock, do pop, as revoltas políticas e a revolução
sexual – elementos aí, de alguma forma, impressos.
O livro de Cortázar, recorda Juan Mendonza a partir de David
Viñas, foi logo aceito pela crítica especializada como sendo uma grande novidade
no meio literário porque o escritor nele está em sintonia com o que o é
produzido na nova geração de escritores de sua época. Rayuela se propôs ainda a retirar o leitor de sua inércia pela
ideia de uma narrativa moldável aos seus próprios caprichos, propondo pensar
ainda uma forma outra de imaginar a ordem de um mundo em ampliação e fragmentação
cada vez mais rápidas; a ver a literatura como um grande jogo.
Edição brasileira mais recente de Rayuela, traduzida por O jogo da amarelinha. |
A crítica de seu tempo atenta ainda para além das particularidades
estruturais e suas relações com o contexto externo de produção, para aspectos
igualmente renovadores fruto do experimentalismo de Cortázar: sua vitalidade,
sua linguagem coloquial e a ‘mensagem social’ do escritor tantas vezes
reiterada em suas entrevistas naquele momento de publicação – a necessidade das
artes permanecerem ativas no processo de surpreenderem os seus usuários – tudo isso
servirá de mantra para outro lugar da crítica em torno de Rayuela. E já aqui, faço curto parêntesis
para dizer uma coisa: talvez o ‘erro’ de Cortázar tenha sido revolucionar
demais numa só obra, tal qual fazem alguns cantores que produzem um primeiro
disco com sucessos da primeira à última faixa e que quase se fazem inexpressivos
nos trabalhos seguintes. E isso, ressalte-se, não será pecado algum; nem sempre
o artista é dado a controlar seus impulsos criativos.
Vinte anos depois, já considerado monumento literário, Rayuela se fez pela linha segunda: transformou-se
em romance de um autor de referência incontornável da esquerda. Quando o Cortázar também já com igual fama regressou ao país depois de viver trinta anos no exílio,
o recém-eleito presidente Raúl Alfonsín, não quis recebê-lo justamente devido
ao livro. É quando o romance é então transformado no romance argentino representativo do boom
latino-americano e clássico de repercussão universal. Os anos 80, quando se deu
esses fatos será marcado ainda pela morte do próprio escritor, depois de passar
por uma depressão profunda e uma leucemia.
Nos anos 90, recorda Juan Mendonza, Rayuela estava em todas as bibliotecas em formação, aquelas que não
tinham mais que vinte livros. Em todas havia um exemplar e no trânsito dos
livros, entre idas e vindas, o romance era um dos poucos destinados a sobreviver:
“Era uma de nossas primeiras educações sentimentais para reivindicar a loucura.
E era uma forma de não levarmos tão mal as nossas pobrezas, uma forma de
lutarmos contra a indigência cultural” – adianta Mendonza.
Lida nos anos 2000 como um grande hipertexto de papel, pleno
de referências e imagens anexadas, sons e notas musicais, com links que
reenviam o leitor de uma zona a outra do livro. Cinquenta anos depois de sua
primeira edição, Rayuela segue sendo
um romance complexo e inovador, ainda que desdenhado por alguns meios
acadêmicos. “Para muitos, entretanto, é um livro que traz consigo uma visão de
mundo e uma teoria da literatura que incorpora a reivindicação dos gêneros literários
menores, a prova de que os experimentos literários e os jogos das vanguardas são
também coisas que podem cativar a muitos leitores” – diz Juan.
O que se faz necessário é que qualquer editora – talvez a
Cosac Naify que já editou textos do escritor argentino – produza uma nova
tradução do texto para suprir a lacuna deixada nas prateleiras das livrarias e
por em contato toda uma geração que ainda não teve oportunidade de conhecer o
vanguardismo de Cortázar.
* Este texto se apropria de algumas considerações desenhadas por Juan Mendonza em "Cumple 50 años Rayuela, el libro de cinco generaciones de jóvenes" publicado em 25 de março na Revista Ñ. As passagens traduzidas livremente, entretanto, são apresentadas entre aspas.
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