Ler Dora Ferreira da Silva
Por Pedro Fernandes
“Acho que o papel do poeta é parecido com o daqueles que
levam a tocha na Olimpíada. Mesmo que o mundo esteja dessacralizado, temos que
acreditar que a vida é forte, transforma-se e cria novas saídas. Penso na
imagem de uma flor brotando nos interstícios de uma pedra. Acredito nas
diversas manifestações do divino, no anima
mundi. Temos que viver este não-ser, esta noite, esta dor como uma
passagem. A fidelidade de cada um a si mesmo é o que se pede. Dar o pouco que
se tem, ser fiel à sua voz interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de
suprir essa carência dos deuses.” Esta fala é um recorte de uma entrevista que
Dora Ferreira da Silva concedeu ao poeta Donizete Galvão e que fui publicada na
edição de maio de 1999, da Revista Cult.
Ele é simbólico não porque é dito por Dora, mas porque é dito por uma poeta que
teve, dos 87 anos que viveu, mais de 50 deles dedicados à poesia.
Autora de mais de uma dezena de livros de poesia e ricos
ensaios, ela autora de uma voz única na literatura brasileira e, por esta
razão, está ao lado de grandes nomes, como o do amigo de correspondências
Carlos Drummond de Andrade, poeta que, na sua grandeza é matéria única de
comparação na nossa cena literária. Além de poeta e ensaísta, foi tradutora,
devendo, nós os leitores brasileiros, o contato direto com nomes com Rilke, T.
S. Eliot, D. H. Lawrence, Hölderlin e Jung. A quem, de imediato se interessar
pelo trabalho da poeta, deve buscar urgente Poesia
reunida, livro editado ainda em 1999, com seus principais trabalhos; na
antologia estão Andanças, seu livro
de estreia e há muito que carece de uma reedição, Uma via de ver as coisas, Menina
seu mundo, Jardins (esconderijos),
Retratos da origem, Talhamar, Poemas da estrangeira e Poemas
em fuga.
O trabalho de Dora reitera o papel do poeta no mundo de hoje
em que não raro se pergunta “poesia, para quê?”. Aliás, essa pergunta tem
rondado as várias entrevistas que os aparelhos midiáticos têm conduzido junto a
poetas. O poeta Salgado Maranhão, por exemplo, já terá dito certa vez diante
dessa comum indagação que, num mundo em que as pessoas só pensam nas coisas
materiais e estão presas às necessidades urgentes, duas coisas que não nos
completa como indivíduos, a poesia nos empurra para uma dimensão além da
sobrevivência básica. Noutra esfera, pensando no trabalho poético de Dora,
podemos melhorar esse entendimento dizendo que, um mundo incapaz do
encantamento e em que nada mais surpreende a humanidade, a poesia é quase que
um ato de fé obrigatório que nos proporciona um encontro com nós mesmos e nos
legitima a não cair na barbárie.
No começo de tudo, quando a palavra e o mundo estavam
fundidos, a poesia estava na matéria do gesto, no pulso do corpo em êxtase, no
lugar do divino, numa dimensão, por isso, dada a poucos. Todo poeta, é por essa
razão primordial, alguém capaz de ler o mundo sob um ângulo muito particular e
o seu exercício escritural nunca poderá está reduzido ao simples movimento da
letra que desdobra uma após outra no espaço do papel. Há no gesto poético uma
indagação sobre o mundo e sobre a existência. O universo redescoberto e
redesenhado pela caligrafia do poeta nunca será uma estrutura opaca, um efeito,
uma mancha dispersa presa no papel. A verdadeira poesia tem pulso próprio para
saltar da superfície lisa da folha e ser matéria pulsante, suspensa, atmosfera capaz
de atuar no desempenho do corpo humano, pela lágrima, pelo riso, pelo gozo,
gestos que promovem no homem o encontro com a matéria da qual somos
constituídos – a linguagem e a capacidade de organização simbólica do mundo. É
nesse instante que ganha, a palavra, seu real lugar no complexo sistema a que
pertence e se ilumina a ponto de refundar o sujeito e o ser.
O poeta enquanto feitor do poema, instante em que primeiro
se prime em suas fronteiras as possibilidades da poesia, é somente aquele capaz
de conviver no limiar de uma epifania constante que lhe permita está cercado do
tempo primordial; epifania que é um fenômeno do espírito e diz uma maneira de
estar locado e simultaneamente deslocado. Um pulso de iluminação. Não há, para
isso, leis próprias, fórmulas prontas de se ensinar. Há para isso a necessidade
do poeta ser feito pela vivência da palavra e seu denso universo
fulgurativo.
A busca do poeta que é feita pelo dorso da palavra é a de se
reaproximar do estágio genesíaco do universo e os únicos guias nessa empreitada
são ele próprio e sua vontade de experimentarem-se pela boca dos seus
antepassados, aqueles que fundaram e ultrapassaram a esfera do tempo comum e se
fizeram eles mesmos tempo. Não é que o poeta tenha um mundo alheio ao mundo
empírico, mas uma possibilidade que este e é outro mundo. É esse lugar onde
está hospedada a obra de Dora Ferreira da Silva; no poema, para ela, é o espaço
para o constante estágio de epifania entre este nosso estar no mundo e no lugar
genesíaco. Sua poesia parte das dissonâncias existenciais, e só este instante
já é de natureza poética, para ultrapassá-las e alcançar um instante único na
extensa rede de vozes dos seus antepassados. Alimenta-se de um teor estético e
renova o diálogo esquecido pelos estetas da forma, o que não quer dizer que
esse trabalho de elaboração esteja ausente na sua obra; do contrário, talvez
até esteja mais que em outros, porque a poesia de Dora se guia pela
experimentação e refiguração do simbólico que ora se manifesta no poema através
da composição linguística, ora através do corpo estrutural do texto. Sente-se,
que sua poesia é resultada de muito estudo e talvez por isso consiga cumprir o
seu papel no universo da linguagem e fora dele: que é o de promover o
reencontro do sujeito com outros lugares e a partir daí seja encorajado pela
descoberta do universo primordial reencontrado por Dora.
* Texto publicado no Caderno Domingo, do Jornal De Fato, em 10 de fevereiro de 2013.
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