Fausto, de Alexandr Sokurov

Por Pedro Fernandes


Não será desnecessário repetir a origem de Fausto, obra já clássica da literatura ocidental que ganhou este status quando Goethe compôs o longo poema cuja primeira parte foi publicada em 1806 e a outra, já às vésperas da morte do autor, em 1832.  No mesmo ano em que o filme de Sokurov teve sua estreia por aqui a Editora 34, inclusive, vez uma nova edição com outra tradução para o poema. Goethe toma por base uma lenda alemã nascida da figura histórica do Dr. Johannes Georg Fuast que viveu entre 1480 e 1540; obcecado pelo advento do poder da ciência e logo desencantado dele, Faust teria assinado um pacto com diabo a título de reencontrar o sentido pela técnica e pelo progresso.

O filme do diretor russo, é uma adaptação do livro de Goethe, mas os que já tiveram oportunidade de ler o poema têm, como é já comum no jogo das adaptações, impressões opostas: uns dizem que o filme distorce o poema e, apesar das muitas cenas ‘pesadas’ não chega ao limite do que se passa no livro, enquanto outros concordam que Sokurov soube mesmo captar o espírito do Fausto e sua divisão entre a ambição da ciência e a aceitação da sua redução ao lugar-comum ou as aparências a que todos do vilarejo parecem está submetidos.

Fausto é também o fim de uma tetralogia sobre o poder que se iniciou com três personagens da história: Adolf Hitler em Moloch, de 1999, Lênin em Taurus, de 2001 e o príncipe japonês Hiroito em O sol, de 2005 (filmes que iremos comentar por aqui a seu tempo). O filme de 2011 quis desde sempre entrar para a lista dos Cult – mesmo que os outros também tenham tido este interesse também marcado cada qual por um naco do estilo particular de Sokurov - parece que esse espírito se conserva ainda mais quando se consagra o grande premiado do Festival de Veneza do ano em que foi lançado.

Mefistófeles (Anton Adasinskyi) e Fausto (Johannes Zeiler). Tudo pelo poder.

Apesar de ser um filme longo, são 2h15 de duração, sua narrativa não exige grande esforço intelectual para sua compreensão, embora seja, tanto pela duração quanto pelos recursos empregados, um tanto maçante. Isso porque estamos acostumados com os clássicos 90min de malabarismos encenados pelos hollywoodianos. Têm destaque a atuação, principalmente a de Anton Adasinskyi que vive Mefistófeles – o famoso diabo já tantas vezes interpretado como uma criatura chifruda e assustadora – que aqui ganha uma dimensão humanizada, satírica e divertida de um comerciante que vive do negócio do empenho de bens e a fotografia que dá um formato retrô ao filme – diferentemente das telas comuns wide screen estamos diante de uma tela quadrada e com bordas arredondas e, propositalmente, vez ou outra, a imagem é dada distorcida.

Mas se há algo que tem maior destaque e está em toda parte do filme é o do próprio Sokurov. Fausto é, como já notificou parte da crítica, um trabalho autoral  em que o nome do diretor abarca o dos atores e mesmo o do próprio Goethe. Se no Fausto livro o dilema está entre o plano terreno e o plano celeste, o olhar de Sokurov escolhe a dimensão primeira e concentra-se no corpo enquanto entidade situada historicamente, ao recuperar o estágio de miséria do período em que a história é narrada, e máquina desejante – as situações são totalmente povoadas por um corpo em duelo com a libido, por isso a teatralização das atuações, por isso a proximidade física e coreografada dos atores.

A figura do Fausto, como a Mefistófeles, não segue a linha das representações já postas – a de sujeito arrogante, comprometendo por esse caráter a salvação de sua própria alma. Fausto encarna um sujeito que vive um drama entre aquilo que tanto batalhou para alcançar, o conhecimento, e o estágio em que se vê reduzido, entre empenhar o que não tem e participar do trabalho quase gratuito para cuidar de pacientes ou tentar descobrir com os da medicina lugares improváveis da existência humana. E o diabo lhe aparece como a figura carismática que ocupará o silêncio perpetrado por Deus nesse embate existencial libertando-o da pulsão da morte pelo suicídio pelo despertar do amor e dos prazeres da carne. 


É por não saber controlar os limites do próprio corpo que Fausto é conduzido a um lugar sem retorno: ao fabricar a mentira da morte do irmão de Margarida (moça por quem se apaixona) e ser descoberto pela própria, não verá as fronteiras entre agir com razão ou com impulso daí por diante. Do sujeito que redescobre a vida passamos ao sujeito que buscará a todo custo o reconhecimento pessoal de sua masculinidade seja pela conquista, seja pela dominação sexual de Margarida. Completa esse triângulo amoroso a admiração intelectual transformada em paixão homoerótica do amigo aluno Wagner – paixão não concretizada carnalmente, mas assumida cientificamente pela gestação de um bebê artificial, um homúnculo destruído pela potência do corpo fêmea já totalmente invadido pelo lugar da paixão de Fausto.

Fausto é, para findar, um filme de rica percepção sensorial. A captura dos corpos em transe (a cena de sexo entre Fausto e Margarida, é bom exemplo disso) ou dos corpos como miragem, algo entre o sonho e o pesadelo, compõe um fábula pelos desvãos dos entre-lugares assumidos pelo homem terreno, entre o sombrio e o perturbador. Um trabalho singular.



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