Clarice Lispector: entrevistas ― Rubem Braga
Este é um daqueles livros que a gente sempre carrega entre nossos pequenos passatempos, Clarice Lispector: entrevistas. Publicado em 2007 pela Editora Rocco, nele sempre encontramos boas conversas, daquelas que a vontade tem logo vontade de dividir com os amigos sobre o que lemos. Uma delas, com direito a uma pequena confissão da própria entrevistadora, sempre alheia a esse tipo de atitude, é a desenvolvida com Rubem Braga, o homem que deu outro destino para a crônica, ampliando as dimensões da forma para o literário. Eis:
Até parece que reconheço Rubem desde sempre. Gostei dele à
primeira vista. Sei coisas a seu respeito. Por exemplo, bondades que faz
discretamente sem pedir nada em troca. Por exemplo, ele é pessoa que perdoa
muito e entende tudo e não se faz de juiz de ninguém. Ele é corajoso. Simples. Delicado.
Ele tem qualquer coisa de rural em si. E foge a tudo o que seja “sentimentalismo”
falso. Mas há mil “rubens” dentro de Rubem Braga, é claro, assim como há mil ‘clarices’
em mim. E tanta coisa eu desconheço em Rubem, que era melhor entrevistá-lo de
vez. Pelo menos tentarei atenuar o seu mistério (porque ele é um pouco
misterioso). Mas desconfio que o seu mistério está na sua simplicidade – e simplicidade
é das coisas mais raras no ser humano, a ponto de constituir uma qualidade
insólita.
Clarice Lispector: Rubem, eu te conheço há
tantos anos que, se você não fosse misterioso e calado, eu não teria pergunta
nenhuma a fazer. Concorda?
Rubem Braga: Mas acontece que sou uma esfinge sem segredo. Calado, nem
tanto. Ou nem sempre. Até que já tenho falado demais. E estou aqui falando.
Clarice Lispector: Você para mim é um
poeta que teve pudor de escrever versos, e então inventou a crônica (pois foi você
quem inventou esse gênero de literatura), crônica que é poesia em prosa, em
você. É ou não é?
Rubem Braga: Não é bem isso. Há um fato importante em minha carreira, eu
sempre escrevi para jornal. a partir do Correio
do Sul, de Cachoeiro do Itapemirim, que era de meu irmão Armando e chegou a
sair três vezes por semana. Lá publiquei alguns versos mas escrevia
principalmente artigos terrivelmente sérios sobre política, lavoura, economia
etc., e uma ou outra crônica ligeira. Em
suma: eu escrevia o que me dava na telha e, na verdade, nunca tive pudor de
fazer versos. É que fazer bons poemas (em versos) exige um tipo de habilidade e
de economia, síntese e ao mesmo tempo, desculpem a palavra, inspiração. É muito
mais fácil na cadência da prosa, e quando acontece ela dizer alguma coisa
poética, tanto melhor.
Clarice Lispector: Quantos livros você já
escreveu, e quais?
Rubem Braga: Comecei com O conde e
o passarinho, em 1936, depois, outro pequeno livro de crônicas: O morro do isolamento, em 1944. A seguir
um livro que é mais de reportagem: Com a
FEB na Itália, depois reeditado sob o título de Crônicas de guerra: é uma parte de minha experiência como
correspondente de guerra. Depois vieram outros livros de crônica: Um pé de milho, O homem rouco, A borboleta
amarela, A cidade e a roca, Ai de ti, Copacabana, e A traição das elegantes.
Clarice Lispector: Tem algum livro para
publicar?
Rubem Braga: Quase todos esses livros estão esgotados e não pretendo
reeditar nenhum. Penso, por isso, em fazer, este ano, uma seleção de todos os
meus livros num só volume. Fernando Sabino fez a escolha para mim mas estou
revendo penosamente seu trabalho. Como é chato a gente se reler!
Clarice Lispector: Também eu evito o
máximo ter que me reler, e fico espantada quando encontro que leram um livro
meu várias vezes. Como vai se chamar o livro?
Rubem Braga: As melhores crônicas de
Rubem Braga, ou algo assim. Terá apenas algumas crônicas ainda não publicadas
em livro. Deve sair lá para meio do ano.
Clarice Lispector: É verdade que você amou
muito? E que é que você mais queria na vida? Qual sua atitude diante da morte?
Rubem Braga: Começarei pelo fim, isto é, pela morte. Não anseio por ela
mas também não morro de medo. Tenho experiência bastante para dizer que não tenho
medo da morte em si mesma. Meu medo é da doença, da dor, da impotência, da humilhação.
Além disso acho na ideia de morte um grande consolo. Quanto a amor é verdade
que amei muito e amei errado, com demasiada paixão. Mas alguém ama certo?
Clarice Lispector: Conheci você mais
combativo, não é verdade?
Rubem Braga: É verdade. Você me conheceu na volta dos meus 30 anos eu
ainda muito rapaz. Ainda pensava em dar um jeito nesse mundo ou pelo menos no Brasil.
Hoje estamos em um brejo com mormaço, e acho que tão cedo não sairemos disso. Eu
sou uma velha vaca atolada. No brejo, naturalmente.
Clarice Lispector: Você acredita em
alguma coisa em política?
Rubem Braga: Acho que a liberdade é essencial. Sou contra toda e qualquer
forma de ditadura, de classe, de indivíduo ou de casta. Mas para que dizer
isso? Escrevi milhares de crônicas, e não creio que tivessem qualquer
influência na vida política de meu país.
Clarice Lispector: Será pessimismo seu?
Rubem Braga: Não é. Vou lhe dar um exemplo. Em 1950 fiz uma excursão a
Paraty e na volta escrevi uma crônica falando das belezas da terra, mas
reclamando contra os alto-falantes existentes em uma praça. Eles berravam altíssimo
durante toda a tarde de domingo, não deixando ninguém descansar. Soube que essa
crônica tinha causado grande impressão em Paraty. Voltei lá 25 anos depois e na
tarde de domingo, na mesma praça, os alto-falantes ainda estavam a berrar. Ainda
devem estar berrando alto em 1977. A gente escrever não adianta nada, Clarice.
Eu também acho. Como já foi dito, no Brasil o escritor escreve para os colegas.
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