Bernardo Guimarães
Bernardo Guimarães. Foto sem data. Do arquivo pessoal da filha, Constança Guimarães. |
Supomos que A escrava
Isaura seja o título ainda mais lembrado por brasileiros de várias faixas
etárias quando o assunto é novela. E antes de ir para a TV e ser exibida quase
que no mundo inteiro e logo um dos produtos da Globo que mais rende vendagens,
o pequeno livro de Bernardo Guimarães também já alcança números espantosos se
levarmos em consideração o país e o período de onde vem. O escritor foi um dos
primeiros que não hesitou em fazer uso da escrita como espaço para denúncia do
modo de estar dos da margem.
O texto de 1875 é fruto do contato de Bernardo com uma cena muito comum
na sua época: numa das muitas fazendas de café em Minas Gerais, já nas
proximidades de Ouro Preto, um ano antes, o escritor presencia a um canto do
pátio, em frente à porta da senzala, dois escravos amarrados pelos pulsos a
receberem do algoz banhado de suor um dos castigos a que eram submetidos muitos
dos negros – o chicote que ressoa entre o açoite e os gemidos já quase desfeito
dos dois.
Não é à toa, portanto, que A escrava Isaura é uma narrativa fortemente marcada pela especulação
crítica do próprio autor: “Que abominação e hediondos mistérios a que a
escravidão dá lugar por esses engenhos e fazendas, sem que, já não digo a
justiça, mas nem mesmo os vizinhos deles tenham conhecimento? Enquanto houver
escravidão, há de dar-se esses exemplos. Uma instituição má produz uma
infinidades de abusos, que só poderão ser extintos cortando-se o mal pela
raiz”; “As leis civis, as convenções sociais são obras do homem, imperfeitas,
injustas e muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão e
o demônio exalta-se ao fastígio da fortuna e do poder”; “A escravidão em si
mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação que a tolera e
protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o
respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos
olhos do mundo civilizado”. Não apenas esse tom denunciativo, mas a criação de
uma personagem branca que vive sob o dilema da raça e, portanto, em condições muito
próximas a que os negros estão submetidos é uma criação estratégica de Bernardo,
assumidamente abolicionista já autor de poemas cujo centro de ‘louvação’ é o
negro.
Cena de A escrava Isaura. Arquivo da Rede Globo. Lucélia Santos (Isaura) e Rubens de Falco (Leôncio). A adaptação para a TV tornou-se um dos maiores fenômenos da teledramaturgia. Já teve cinco reprises (só na Rede Globo onde foi filmada pela primeira vez) e exibida em mais de 80 países. |
Filho de poeta, não é de estranhar que o mineiro de Ouro
Preto tenha começado pelo verso sua incursão pelo mundo da escrita – uma escrita
que esteve muito perto daquilo que viveu e sentiu Bernardo; exemplo seja dado,
além dA escrava Isaura, com o poema “Saudades
do sertão do oeste”, em que o poeta recorda-se de seu tempo em Uberaba, cidade
para onde os pais e ele, consequentemente, vão viver quando ainda tem só quatro
anos de nascido. Bernardo Guimarães é de 1825. Antes da posição abolicionista
assumida mais tarde, a figura Bernardo envolve-se muito cedo com os movimentos
políticos que distavam, entretanto, do olhar para com os da margem.
Fez Direito e no período da faculdade tornou-se amigo de
nomes como Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa com os quais fundam uma espécie
de sociedade batizada por Epicureia. É quando se publica seu primeiro livro –
de poemas – Cantos da solidão, que
terá um ano depois sua segunda edição. Nessa época já havia deixado São
Paulo, onde fez faculdade, e Catalão, cidade goiana onde assumiu a função de
juiz municipal e estava morando no Rio de Janeiro. A edição nova dos Cantos virá corrigida e acrescida dos inéditos Inspirações da tarde.
Na então capital do
país, assume a atividade de jornalista e crítico literário num jornal – o Atualidade – propriedade do mineiro e
amigo Flávio Farnesse. Exercerá a função por curto tempo, já que se decide
voltar a Goiás para reassumir o cargo de juiz municipal. Nesse intervalo
de tempo no Rio, além da reedição de Cantos da
solidão escreve a peça A voz do pajé,
que foi encenada na sua terra natal, mas só publicada muito mais tarde. A encenação
é de 1860 e a publicação de 1914. Depois de Catalão, o escritor ainda volta outra vez para o Rio, onde publica a antologia Poesias, contendo os poemas de Cantos
da solidão, Inspirações da tarde, Poesias
diversas e A baía de botafogo.
Ao deixar o Rio de Janeiro pela segunda vez, Bernardo volta para sua
terra natal, casa-se e passa a ser professor. Em Minas, publica O ermitão de Muquém ou história da fundação da
romaria de Muquém, na província de Goiás seu primeiro romance, ao que
segue, O garimpeiro, O seminarista, O índio Afonso, A escrava
Isaura, Maurício ou os paulistas em
São João Del Rei, A ilha maldita,
Rosaura, a enjeitada e escreve O bandido do Rio das Mortes, livro que
será editado como a peça de 1860, também postumamente. Além desses títulos saem
contos – Lendas e romances e História e tradições da província de Minas Gerais
e outras peças de teatro, a desaparecida A
cativa Isaura, de 1876, e possivelmente de inspiração no próprio romance
seu publicado um antes, e Os
inconfidentes, obra que permaneceu inacabada.
Um Bernardo desconhecido
Há uma face de Bernardo Guimarães desconhecida do público
brasileiro e que se constitui numa verdadeira lacuna na sua produção literária;
é que, além dos trabalhos citados nesta postagem, o autor de A escrava Isaura também produziu uma
obra poética de cunho erótico e essa produção sempre foi omitida, ignorada e
excluída. Quem já se debulhou em lágrimas ao ler o seu mais famoso romance,
terá, num primeiro contato com essa face desconhecida, um susto, mas também terá
motivos para uma boa risada: é que os poemas escritos numa linguagem de baixo calão
entre o erótico e o pornográfico são dotados de um tom risível, num claro
intuito de rebaixamento do canonizado.
Alguns motivos podem ser apontados para essa desconsideração
da obra de Bernardo: um, as artimanhas políticas do próprio cânone. Situado num
período classificado pela crítica de ultrarromantismo, o qual tem na
melancolia, na contemplação, no sentimentalismo e no amor purificado suas
características principais, dizer que Bernardo esteve na contramão disso (ainda
que em certas ocasiões) é reduzi-lo ao folhetinesco comercial. Outro motivo nascido desse diz respeito ao lugar marginal que tem os autores que se
interessam pelos temas baixos – que o diga, já desde muito tempo, Rabelais com
seu Gargantuá que só não ficou no rol dos
esquecidos porque Bakhtin soube reconhecer o poema a altura devida.
No caso de Bernardo Guimarães os poemas publicados em maio
de 1875, no mesmo ano de A escrava Isaura
– era apenas dois textos, “Elixir do pajé” e “A origem do mênstruo” – só duraram
porque foram sendo repassados clandestinamente. O primeiro trabalho retifica a
imagem casta e pura do índio pelo seu antônimo; o segundo é a imagem do corpo
feminino, posto com suas pulsões, na maré contrária do endeusamento romântico,
num tom linguístico que toca o utilizado em trabalhos como os de Hilda Hilst.
Em 1959, o Instituto do Livro organizou uma antologia
compilando da produção poética de Bernardo, mas as tais composições foram excluídas
dessa edição. Somente em 1988, o poeta Sebastião Nunes pesquisando a obra de
Bernardo dá com estes textos e os edita numa edição limitada acrescentando aí
outro achado, “A orgia dos duendes”. Em 1999, é vez de Duda Machado organizar
uma nova publicação intitulada Poesia
Erótica e Satírica – Bernardo Guimarães.
Comentários