Auto dos Danados, de António Lobo Antunes
Por Pedro Fernandes
Este é o sexto romance de António Lobo Antunes. E chegou-nos
ao Brasil pela Editora Best Seller possivelmente em 1985 (a referência à data
de publicação por aqui é coisa dura de achar pelos dados no livro e rodando a web o máximo que encontrei foi esta,
1985, portanto, que é mesmo, isso
sabe-se verdadeiramente, a data de publicação em Portugal). A própria editora
nem mais existe como figura independente; pelo que sondei está integrada como
um selo do grande grupo editorial Record. Fato é que o livro anda esgotado nas
prateleiras das livrarias brasileiras, sendo possível encontrá-lo nos santos
sebos que salva (e crucifica quando o preço é salgado o que não é este o caso).
Foi com este romance que o escritor português ganhou por essa época o Grande
Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Apesar de não
este um dos livros que poderia considerar sendo o ponto alto da sua carreira,
esse reconhecimento vem provar não a escrita individual de um determinado
trabalho, mas o conjunto do que já este autor havia até então publicado: basta
que se repita o caso de ser este o sexto romance.
Digo não ser Auto dos
danados um grande romance, porque talvez esteja ainda impregnado do magna
narrativo que é Fado alexandrino,
livro que depois de Os cus de Judas é,
sem dúvidas um experimento linguístico de primeira grandeza: o primeiro mais
ainda, se levarmos em consideração que no segundo o romancista ainda se
experimentava na arte de narrar. Talvez o que separa este daquele seja mesmo,
para o primeiro a catedral narrativa e para o segundo o espólio temático. Como se
sabe Os cus de Judas é um dos primeiros
– se não o primeiro – a introduzir na cena literária de língua portuguesa os
horrores da Guerra Colonial na África.
Mas, Auto dos danados é
também um experimento narrativo. Se Fado
alexandrino recupera a estrutura de um fado com os versos alexandrinos (três
partes com doze capítulos cada), este recupera a instância de auto. Passa na
segunda semana de setembro de 1975, um ano depois da Revolução dos Cravos,
elemento histórico que apesar de citado não será pano de fundo como é no livro
anterior. Em Monsaraz, vilarejo medieval do Alentejo, está-se nos preparativos
para os tradicionais festejos de ano que tem por tradição as touradas. A peça
principal do romance, entretanto, não é festa, apesar de servir de mote
temporal; é sim a morte de Diogo, um patriarca símbolo da tradicional família portuguesa
– família que parece está no seu fim, como bem sonda por esse livro o narrador.
Basta que se diga, como exemplo, que o dentista Nuno, o narrador da primeira
parte do Auto e único que tem papel
externo ao drama aí desenvolvido, é filho de um casal incomum, o pai travesti e
mãe a que sustém a aparência, os luxos e a casa com dividendos conseguidos à
base do envolvimento com figurões do dinheiro.
O romance, então se divide cinco sessões: “Antevéspera da
festa – Nuno todo dia”, “Véspera da festa – Ana à noite”, “Primeiro dia de
festa – À Lídia onde quer que se encontre”, “Segundo dia de festa – À véspera
de minha morte” e “Terceiro dia de festa – A importância da máquina de
influenciar na génese da esquizofrenia”. Adota-se para cada uma dessas sessões divisões
muito particulares que seguem o movimento de cada um dos seus narradores: os
vários membros da família assumem o veio da narração, sendo que entre as duas
últimas partes é voz do patriarca misturada às dos filhos o que compõe a
narrativa. Desse modo, Lobo Antunes não narra apenas o fim da tradicional família
burguesa portuguesa, mas também instrui caleidoscopicamente pelo menos três diferentes
gerações.
E o que se revela nesse magma de lembranças não é nada de
enaltecedor aos nossos olhos. O escritor assume – como sempre tem vindo fazendo
desde o seu romance de estreia – um lugar de crítico mordaz da realidade e um ‘carrasco’
revelador da hipocrisia que vela os mais variados recantos da sociedade. Instalar-se
agora na família, depois de já ter percorrido instituições como as forças
armadas, o aparelho médico, parece uma decisão acertada. Revela-se em Auto dos danados uma via de interesses
escusos – enquanto morre o velho banhado nas lembranças da infância criada à
base de chicote e da vida adulta criada na traição da mulher com seu irmão,
amantes antes e depois de seu casamento, a filha e ex-mulher de Nuno e o genro cascavilham
o testamento para manobrar a herança em seu benefício próprio e fugirem para
Espanha. O genro também não é lá flor que se cheire – embora não se apresente
ao longo da narrativa sua defesa, é acusado de ser amante de todas as mulheres
da família, inclusive da própria filha já produto da relação sua com uma
cunhada mongoloide. Evidente que entrará em cena um terceiro elemento que
desmanchará todos os planos até então arquitetados: o regresso da filha do
caseiro que cuidou da propriedade de Diogo assegurará à mãe a posse da herança.
Apesar do caráter dramático, Auto dos danados tem em na teatralização dos acontecimentos o seu
ponto culminante. Se em Fado alexandrino
Lobo Antunes se apropria da estrutura usual do alexandrino para pensar uma reinvenção
da narrativa e isso pouco é percebido aos olhos mais desavisados, neste livro
de 1985, a reação será outra. O trânsito entre o auto e o romance é visível,
desde quando seguimos pela mão de Nuno, espécie de observador sarcástico do que
se passa perto de si. O resultado é um romance primoroso que aposta novamente
na reinvenção estética proposta pelo escritor já desde sua estreia literária. Sei
que esses procedimentos narrativos pouco hão de interessar os leitores comuns,
mas são eles o ponto alto da proposta antuniana. A intriga, muito bem
desenhada, também é um efeito à parte que não haverá de abalar os ânimos dos
que não têm o tempo necessário para especulações estruturais do texto.
Comentários
Não sabia que os livros do nosso português António Lobo Antunes eram comercializados aí no Brasil.
Não é o meu escritor de eleição, mas gosto.
Já leu Saramago?
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