A atualidade renovada de Graciliano Ramos
Por Pedro Fernandes
Em carta enviada por Graciliano Ramos em novembro de 1937 a
seus tradutores argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro, o escritor se
pronuncia sujeito desprovido de biografia. E acresce: “Nunca fui literato, até
pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no
interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor
como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão. Depois que redigi
esses infames relatórios, os jornais e o governo resolveram não me deixar em
paz. Houve uma série de desastres: mudanças, intrigas, cargos públicos,
hospital, coisas piores e três romances fabricados em situações horríveis – Caetés, publicado em 1933, S. Bernardo, em 1934, e Angústia, em 1936. Evidentemente, isso
não dá uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfeitar-me com algumas
mentiras, mas talvez seja melhor deixá-las para romances.” (Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus
tradutores argentinos. Salvador: EDUFBA, 2008).
Modéstias à parte, que todo escritor tem as suas, Graciliano
Ramos tem sim biografia e uma obra que se revela plural e necessária de uma
constante visitação a título de redescobrirmos o seu lugar no universo das letras
nacional. É bem verdade que de onde veio tinha tudo para ser mais um mero
desconhecido – nascido num interior de Maceió numa cidade que muito
provavelmente nem figurasse nos mapas de seu tempo, Quebrangulo, sertão do
estado, primogênito de uma prole de 16 filhos e submetido aos rigores rudes e
tradicionais da educação, conforme atesta Infância
(livro de 1945), ainda que o talento para as letras já fosse demonstrado na
publicação esparsa de textos curtos em jornais amadores, a situação e o lugar
não permitiam outro destino que não o esquecimento. Isso sabemos que não se
cumpriu: a rudeza da educação e o amadorismo do menino pelas letras serviram-lhe
bastante a ponto de lhe dar o lugar de um brasileiro indispensável à história
da literatura brasileira.
Seja aqui permitido citar aqui alguns acontecimentos em
torno do escritor neste 2013: cumpre-se 60 anos da sua morte e 120 de seu
nascimento, dois motivos que lhe dão a ser o escolhido para as homenagens da
Festa Literária Internacional de Paraty, por exemplo; as livrarias têm recebido
uma leva estudos em torno de sua obra, além de um conjunto de 81 textos
publicados entre 1915 e 1952 em complemento a duas antologias já publicadas também
postumamente – Linhas tortas e Viventes das Alagoas –, ambas de 1962.
Enfeixados sob o título de Garranchos:
achados e inéditos de Graciliano Ramos é um livro que atesta duas coisas: a
primeira delas é o nascimento de um escritor, que, timidamente se assinava com
pseudônimos variados e discutia problemas sociais e políticos de Alagoas, isso
tanto em verso quanto em prosa; a segunda, emergente da anterior, é que não dá
para dissociar o caráter ‘social’ de sua obra, já ensaiado desde quando nessas
crônicas semanais em jornalecos de Palmeira dos Índios, município onde já
sabemos que foi prefeito e, antes disso, onde foi aos dezessete anos morar com
a família.
Desconsidero aqui a primeira coisa porque sou mero leitor
curioso de sua obra e os especialistas devem entender melhor do que eu
determinadas nuances do processamento da sua escrita, bem como da formação da
sua obra, e me concentro nessa impossibilidade de dissociação do caráter social
de sua literatura. Esse lugar que aqui assumo me levará à conclusão da
importância dos livros de Graciliano Ramos e a necessidade de uma constante
revisitação para reconhecê-lo na dimensão que merece, afinal, ele terá pensado
mais sobre o Brasil e determinadas situações históricas que muitos pensadores
da história nacional, uma vez que concordo com o próprio autor que disse não
poucas vezes que não escreveu nada além do que não viu e não sentiu. Não que
seja a obra literária um retrato preciso e específico do seu tempo, mas a
partir dela temos a possibilidade de pensar determinadas situações.
Aí estão manifestados os níveis de cumulação e atuação
explícita e implícita do poder – seja na figura dos pequenos ditadores do
interior do Nordeste, como o coronel Paulo Honório de São Bernardo (1934), seja na violência submetida aos de Memórias do cárcere (1953). O universo
ficcional de Graciliano é o das vidas desperdiçadas, dos postos à margem da
história oficial e da sociedade: o camponês rude e analfabeto destituído da fala,
o infante, o preso injustamente sob acusação de mancomunado com as esferas de
esquerda. Singular, nesse espaço de destituídos e destituições é a peça máxima
de seu produto literário, Vidas secas,
escrito entre 1937 e 1938 como folhetim e depois virado romance que denuncia
para os olhos do resto do país a miséria da seca e suas implicações na desfiguração
da imagem do Nordeste; com este romance, pela primeira vez, o debate em torno da
seca não é o do fenômeno climático, mas social, emergente com um dos elementos
inerentes à identidade nacional, ajustando-se a outros textos como Morte e vida Severina, de João Cabral de
Melo Neto, O quinze, de Rachel de Queirós,
dois dos mais conhecidos que têm na seca seu tema principal. É inerente à
identidade nacional porque a partir da seca dão-se os processos migratórios que
alteram consequentemente as feições geográficas do país, tanto pela inflação
dos grandes centros urbanos e todos os problemas daí resultantes porque para aí
vão os do campo sem quaisquer perspectivas, quanto pelo encolhimento do
ambiente rural.
Tudo isso não atesta apenas um lugar da história brasileira,
mas tem vigor atualíssimo quando somos confrontados com determinadas situações
jornalísticas corriqueiras: as injustiças, o cerceamento da voz que brada para
além do tom comum, a segregação dos pequenos, a violação das liberdades
individuais etc. Entendendo a literatura como campo que rompe com os lugares
estabelecidos e é contrária aos dogmas vigentes, a obra de Graciliano avulta
como um trabalho de constante olhar para a hipocrisia nacional e por isso mesmo
se faz o necessário retorno a ela para, primeiro, encontrarmo-nos numa
identidade que já desde os primórdios se fez contraditória, segundo, sairmos da
inércia a que vimos nos submetendo nos últimos tempos. Antonio Candido, um dos
críticos literários e um dos grandes pensadores da literatura brasileira, terá
afirmado certa vez que a arte de Graciliano Ramos deseja testemunhar o homem e
seu lugar social – o que nos cabe, enquanto leitores, é voltar sempre a esse
testemunho para não nos perder de vista o homem que vimos sendo ou estamos na
iminência de perdê-lo.
* Texto publicado no dia 20 de março de 2013 no Jornal Tribuna do Norte.
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