Victor Hugo


Com a chegada aos cinemas de Os miseráveis reencenação musical do clássico romance de Victor Hugo e com a chegada às livrarias de uma nova reimpressão da obra pela Cosac Naify é natural que se desperte entre os leitores e não-leitores o interesse por saber quem foi o escritor e se afinal de contas o livro tem um ‘acesso’ fácil. Antecipamos, logo, que não. Se por ‘acesso’ estiver se levando em consideração a leitura da obra, não tem um acesso fácil. A edição compacta (mas integral) que citamos, por exemplo, tem mais 1900 páginas. Pertence, portanto, ao que podemos chamar de era de ouro do romance. Trabalho até para os viciados em leitura. Não vamos fazer um especial sobre o escritor francês e seu grande romance, mas até que chegue quinta-feira, quando iremos postar notas sobre o filme dirigido por Tom Hooper, vamos percorrer em dois textos, alguns elementos fundamentais para a compreensão d’Os miseráveis. Para hoje, recortamos um texto da professora Maria Cecília de Moraes Pinto, escrito para os Cadernos de Literatura da extinta Entrelivros.




Victor Hugo, muito romântico

O imenso prestígio de Victor-Marie Hugo (1802-1885) marca o século XIX francês em sua literatura e em muitos momentos de sua vida política. O próprio escritor admite confundir-se com a história de uma época. É conhecido o poema em que ele, de certa forma, associa sua vida ao fluir do tempo, referindo-se a seu próprio nascimento: “Este século tinha dois anos...”. E, efetivamente, até a sua morte, ele acompanhará quase todo o século.

De Victor Hugo também se conhecem as infelicidades pessoais: a traição de sua mulher Adèle com o amigo Sainte-Beuve, o crítico francês mais famoso do período romântico; a morte da filha Léopoldine e a loucura da filha caçula, também chamada Adèle. Também é notória a vida amorosa que o levou aos braços de várias mulheres. Uma dentre elas permaneceu a seu lado, malgrado a instabilidade afetiva de Hugo. Foi Juliette Drouet, companheira constante que morreu pouco antes do poeta, em 1883.

Odes, de 1822, é o marco inicial de uma copiosa produção literária. Segue-se a primeira versão de um romance, Han d’Islande (1823). Depois,  Odes e baladas, em 1826. Em breve, porém, Hugo também se dedicará ao teatro, e a estreia de Hernani (1830) confunde-se com o triunfo do movimento romântico. Outra vertente literária responsável por sua notoriedade é o “Prefácio” à peça Cromwell (1827), que, demasiado extensa, não foi representada. A crítica vê esse prefácio como um “manifesto” consolidando a teoria romântica; os demais, apostos a diversas de suas obras, também justificam a atenção do leitor. Que se registrem, entre eles, aqueles que acompanham a sequência dos quatro livros de poemas das décadas de 1830 e 1840: Folhas de outono, Cantos do crepúsculo, Vozes interiores e Luzes e sombras.

Exílio voluntário

Hugo teve ainda significativa participação nos acontecimentos que se sucederam à queda do rei Luís Felipe, à república de 1848 e, finalmente, ao retorno do regime monárquico. Sua adesão inicial àquele que seria chamado de Napoleão III foi seguida pela ruptura, motivo de um exílio voluntário, embora necessário. Em 1852, Hugo vai para Jersey, depois para Guernesey, onde permanece até 1870 escrevendo o melhor e mais denso dentre seus livros de poemas: As contemplações. Nessa coletânea de 1856, insere-se um dos mais tocantes textos que um pai dedica à filha morta: “Amanhã desde a alvorada...”. Longe do soberano, visto como um tipo de traidor, escreve agora “Os castigos”, poemas de extrema violência condenando aquele a quem apelidou de Napoleão, o Pequeno, por contraste com a grandeza de Napoleão I.

© Victor Hugo no exílio. Guernsey, 1853. Foto de C. Hugo/A. Vacquerie.  
Em dezembro de 1851, um dia após um golpe de Estado promovido por Luís Napoleão (Napoleão III), o escritor fugiu de Paris, iniciando um exílio de quase vinte anos em Guernsey, uma pequena ilha no canal da Mancha pertencente à Grã-Bretanha. Foi aí que ele terminou de escrever Os miseráveis, sua obra mais famosa.

Dessa longa fase de distanciamento pátrio data A legenda dos séculos, epopeia do homem narrada sob forma de grupos de poemas que, em ritmo ascensional, contam a história pregressa da humanidade, seu presente e o futuro vislumbrado. Hugo realmente tencionava completar essa  primeira parte com duas outras que ficaram inacabadas: O fim de Satã  e Deus. Da mesma época, além de romances e peças de teatro, são os poemas mais soltos, alegres, plenos de fantasia: Canções das ruas e dos bosques.

De uma obra imensa, o que restou? Alguns poemas mais simples, como o já citado, ou versos como os quartetos de “Ela estava descalça...” também nas Contemplações. O poeta vê a amada, pés descalços em plena natureza, e o desejo amoroso indisfarçável reveste-se, na palavra, de graça e sedução lírica. No mesmo livro, um toque simbolista permeia: “Em que pensavam os dois cavaleiros na floresta”. Existem ainda peças de grande virtuosismo como, em Odes e baladas, “A caçada do burgrave”, ou “Os djins”, em As orientais.

Dois pequenos textos, contrastando com a recorrência de tons grandiosos e escritos em situações específicas, justificam aqui sua inserção: O último dia de um condenado, libelo contra a pena de morte, e Paris, redigido no exílio e parte de um guia das comemorações da Exposição Universal de 1867, em Paris.

Cabe, enfim, um espaço para o Hugo que foi lido, citado e traduzido no Brasil. Os textos poéticos de nossos românticos estão carregados de epígrafes suas. A partir da década de 30, tem início as primeiras leituras, e Carneiro Leão já fala em sensibilidade comum  a Hugo e Domingos Gonçalves de Magalhães. Seguramente é em Gonçalves Dias, e já nos Primeiros cantos, que aparecem, além das citações, títulos, dedicatórias, traduções. Castro Alves, da mesma forma, citou bastante, verteu poemas, revelou leitura de vários romances. Alencar não dispensa referência em sua polêmica sobre “A confederação dos tamoios”, Machado de Assis traduz Os trabalhadores do mar.

Prestígio em vida, objeto de leitura mais lúcida com o passar do tempo, revalorização de parte de sua obra através de formas modernas e amplas de comunicação como o cinema e o teatro – esse é, em suma o quadro em que se situa hoje um dos mais celebrados dentre os escritores franceses.

Cena de Les Miserables dirigido por Cameron Mackintosh. O musical já completa 25 anos desde que foi encenado pela primeira vez. Do musical, já nasceram dois filmes: um, dirigido por Bille August, de 1998; outro, dirigido por Tom Hooper em 2012.

Hoje em dia e longe dos meios propriamente literários, o nome de Victor Hugo deve muito às artes da representação que retomaram e modernizaram dois de seus romances: Os miseráveis e Notre-Dame de Paris. Um filme deste último mostrou Gina Lollobrigida, então em um momento importante de sua carreira, no papel de Esmeralda, ao lado de Boris Karloff, como o corcunda Quasímodo. Quanto ao teatro, vale lembrar a montagem luxuosa de Les misérables que percorreu o mundo. Na adaptação, o romance transformou-se em musical que enfatizou o significado político, sensibilizando plateias por sua história e pela própria natureza da comunicação musical em si. Entretanto, importa lembrar que, para o cinema, surgiram adaptações desde 1912.

Para ler:
Quase toda produção poética de Victor Hugo pode ser lida aqui (em francês)


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