Quando a poesia vai buscar diálogo com a pintura – Carlos Drummond de Andrade e Candido Portinari

Frontispício de Quixote, de Carlos Drummond de Andrade.
O livreto foi editado no Rio de Janeiro em 1972.

Entre 1956 e 1961, Candido Portinari produziu uma série com vinte e duas gravuras cujo foco eram duas personagens da literatura de Cervantes - D. Quixote e seu companheiro Sancho Pança. Quase vinte anos depois, em 1972, pela passagem do aniversário de 70 anos, Carlos Drummond de Andrade tomando por base as gravuras feitas pelo amigo pintor, lançou um livreto com 21 poemas. No ano seguinte, os poemas foram agrupados sob o título de “Quixote e Sancho, de Portinari” e publicados no livro As impurezas do branco.

A construção dos poemas se confirma como uma leitura de dois vieses: o poeta ora olha o texto clássico do escritor espanhol, ora o conjunto da série de Portinari. A dinâmica das visões entrelaçadas no texto poético produz uma renovação nas duas imagens do Quixote, a do romance e a da pintura.

Os desenhos foram todos feitos sobre cartão utilizando apenas lápis simples; fruto de um pedido da Editora José Olympio, a série serviria de ilustração para uma edição brasileira do D. Quixote que seria ilustrada por Portinari. No entanto, o projeto foi abandonado. Talvez numa tentativa de reaproveitamento do trabalho do pintor, Drummond produziu o livreto que publicada sua primeira edição pela Diagraphis, uma editora do Rio de Janeiro, e depois reeditado em 1998. O trabalho já se tornou peça rara no mercado editorial. Nas edições individuais o livro recebeu apenas o título de Quixote.

Ao fazer uma leitura da relação texto imagem, em “Drummond ePortinari: leituras do Quixote”, a professora Alice Áurea Penteado Martha compreende que o trabalho do poeta pode tanto ser lido como um todo articulado tal como foi publicado em 1972, quanto como uma série de poemas desvinculados e soltos: “com uma estrutura predominantemente narrativa, o poema elabora a síntese da novela de Cervantes, com o apoio das imagens de Portinari, mas o eu poético, diferentemente do que ocorre com a narrativa, cujo narrador detém o domínio de voz e visão, assume em primeira pessoa as emoções do fidalgo Quixote e de Sancho Pança” – o que reforça a singularidade da obra de Drummond.

Em As impurezas do branco, "Quixote e Sancho, de Portinari" apresenta-se composto por: "Soneto a loucura"; "Sagração"; "O esguio propósito"; "Convite à glória"; "Um em quatro"; "O derrotado invencível"; "Coro dos cardadores e fabricantes de agulhas"; "A lã e a pedra"; Esdruxularias de amor penitente"; "Petição genuflexa"; "Disquisição na insônia"; "Briga e desbriga"; "O macaco bem informado"; "No verde prado"; "O recado"; "Aqui del-rei"; Aventura do cavalo de pau"; "Saudação do Senado da Câmara"; Solilóquio da renúncia"; "Na estrada de Saragoça"; e "Antefinal noturno". Da série, destacamos os quatro primeiros poemas.



I – Soneto da loucura

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
torto endireitando, herói de seda e ferro,

E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.



II – Sagração

Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.

De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês e minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.

Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.

A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.



III – O esguio propósito

Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
              relâmpago
              ingênuo
              furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.


IV – Convite à glória

- Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória.
- E de que me serve?

- Nossos nomes ressoarão
nos sinos de bronze da História.
- E de que me serve?

- Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,
será tão grande.
- E de que me serve?

- As mais inacessíveis princesas se curvarão
à nossa passagem.
- E de que me serve?

- Pelo teu valor e pelo teu fervor
terás uma ilha de ouro e esmeralda.
- Isto me serve.

A seguir preparamos um catálogo com os 22 desenhos concebidos por Candido Portinari. As imagens foram recolhidas aleatoriamente da web






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