Os miseráveis, de Tom Hooper

Por Pedro Fernandes



"Quando se trata de sondar uma ferida, um abismo ou um fato, desde quando é errado ir para abaixo demais, ir ao fundo? Não explorar tudo, não estudar tudo, parando ao longo do caminho, porquê?" – o questionamento de Victor Hugo é de um típico romântico. Nunca devemos nos esquecer disso quando estivermos diante de Os miseráveis

Lembro-me que quando estava na plateia, já pelo fim do filme musical, alguém terá dito para outro, o romance dos meninos [Cosette e Marius] tem uma pitada do Romeu e Julieta de Shakespeare. E qual escritor não terá sido tocado em algum instante de sua literatura pela obra do dramaturgo inglês? A grandiosidade shakespeariana é tanta que mesmo inconscientemente e mesmo que nunca se tenha lido nada dele, ainda assim, quem escreve estará fadado a colocar pitadas de Shakespeare no seu trabalho; ainda mais quando estamos diante do romantismo francês. Mesmo que a base do romance aí seja o solo social, é natural: a França vivia reviravoltas históricas. Tudo será propositalmente derramado, dramático, capaz de arrastar do leitor um punhado de lágrimas. 

Aliás, a atmosfera acima descrita se repete ao longo do filme de Tom Hooper. Aí, tudo se acentua ainda mais pela potência vocal dos seus atores, Hugh Jackman (na pele de Jean Valjean, o protagonista), Russell Crowe (Javert), Anne Hathaway (Fantine) e Eddie Redmayne (Marius) – cito estes porque foram os que, ao longo do filme terão feito sobressair sua potência vocal além dos limites da própria grandiosidade da narrativa.



Os miseráveis cobre três fases da vida de Jean Valjean que percorre três períodos distintos da história francesa, os anos entre as duas grandes batalhas de 1815, a Batalha de Waterloo e os motins de junho de 1832. Condenado a vinte anos de trabalhos forçados nas galés por roubar um pão para dar de comer a um sobrinho, Valjean, tendo cumprido a pena, é libertado e depois de vagar meia França sendo xingado, humilhado e sem conseguir emprego que o valha, recebe ajuda de um padre que, diante da ação do ex-preso de levar num furto a prataria da igreja, o dispensa de, novamente, voltar para prisão.

Javert, o que lhe deu a liberdade, e incorpora em todos os limites o ideal de justiça humana, estará em todos os passos de Valjean como um que tudo vê e decididamente a colocá-lo de volta no trabalho forçado. É o comportamento do ex-preso que em muitas situações da narrativa no vira-e-volta normal da vida decide repetir o gesto do padre e o perdoa da perseguição, que levará, já pelo quase desfecho do filme o fim trágico de Javert. 

Há um didatismo típico de Victor Hugo: não há como compreender os desígnios da justiça divina pelo olhar da justiça dos homens, mas o que conseguir decifrar a primeira conseguirá reverter sua relação com o mundo. Muito embora Valjean seja uma personagem que está entre o herói clássico, o que tudo pode, e a pessoa, a de condições limitadas não pelas ações, mas pela intempestiva pergunta que a move em toda a narrativa, “Quem sou eu?” – só respondida no fim de tudo, quando a protagonista consegue se revelar para os seus mais achegados, Cosette e Marius.



A prova do exagero romântico não estará apenas no sofrimento e idealismo de Jean Valjean, mas no martírio de Fantine e mais tarde no de Marius; a sensação que temos é a de estarmos presos em circunferências da história onde os acontecimentos seguintes se assemelham com poucas diferenças do acontecimento base. 

Fantine possui certa estabilidade por trabalhar no confecção de Valjean, já na fase restituída financeiramente da personagem, quando é mandada embora por inveja das companheiras de trabalho que ao descobrirem-na mãe solteira  a colocam na rua. Na rua, Fantine vende o cabelo, os dentes e cai na prostituição a fim de conseguir dinheiro para a pequena Cosette entregue aos mandos de um casal oportunista. Tem aqui um dos pontos altos do filme, quando Anne Hathaway interpreta a canção mais que conhecida, I dreamed a dream. 

O reencontro de Valjean com Fantine já tuberculosa e na miséria fará, pela experiência da culta assumir um pacto de não deixar que nada falte à Cosette, criada com dotes da alta sociedade francesa. Os destaques aqui são a caracterização da atriz para o papel de Fantine, que ao mergulhar em definitivo na personagem, conseguiu reproduzir no corpo pela magreza, a miséria ficcional, tal como sucede ao Jackman antes de ser tornar o rico que será na fase subsequente.

E é aí que vamos percebendo o quanto que Valjean destoa da simples personagem; é um herói contra a injustiça que se presentifica a favor dos menos favorecidos a qualquer momento que tudo esteja ao seu alcance – desde quando salva um morador que fica preso embaixo do andaime de uma construção no vilarejo onde vive e é já proprietário da fábrica de confecção a quando dedica a vida para cuidar de Fantine e salvar a vida de Marius, posta já quase no fim quando atingido pela polícia francesa nas barricadas da Rua Saint Denis.

Os miseráveis é um atestado de um homem à frente de seu tempo. Victor Hugo, apesar de fazer parte de um universo que via o que se passava na plebe com a indiferença do sistema que regeu a França durante boa parte do século XIX, teve condescendência de ver também que as coisas eram mal apresentadas em nome de modos de vida tão pífios – a ostentação dos ricos sobre os miseráveis, a fabricação dos oportunistas, a inclemência insana de uma justiça baseada em preceitos tão retos quanto cegos, a desgraça humana no seu ultimum, mas sempre pareceu que nunca pode desacreditar do homem. Os miseráveis é um tratado sobre a generosidade humana, o que é e do que ela é capaz. Talvez pelo sucesso que alcançou, não sei quantas mil cópias em vinte e quatro horas para o primeiro volume, tenha sido condenado pelos seus contemporâneos como um livro subversivo e perigoso.

A revisão do texto sucessivas vezes – esse filme toma por base o musical estreado há 25 anos e sucesso de público pelas montagens diversas já conduzidas – corre sempre o risco de vilipendiar um romance também há muito vilipendiado. Talvez este tenha sido o maior trabalho (ou seria desafio?) de Tom Hooper, que carrega a responsabilidade de ganhador, há dois anos, do Oscar de Melhor Diretor para O discurso do rei. Muito embora não seja costume nosso está diante de um filme cantado, e em boa parte das quase três horas diante da tela o que sobressai é a performance do artista em detrimento do movimento narrativo, a decisão pelo musical foi uma saída à francesa para eximir-se da tão fadada culpa de o filme não se parecer com o livro.


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