Anotações sobre o bom e o mau leitor
ilustração: Mateus Di Mambro |
Não é de hoje que andei pensando sobre as questões que vou
enumerar a seguir: os que estão do lado da crítica têm certa facilidade para
dizer se um escritor é bom ou ruim. Temos cá certas ressalvas que nos faz decidir
por uma via ou por outra; com o tempo a prática se torna tão corriqueira que se
torna técnica e somos mesmo capazes de dizer que um escritor é ruim sem nem
mesmo sentar-se para ler integralmente algum escrito seu. Para a via contrária
é impossível. E aí pode parecer que eu esteja caindo num paradoxo. Mas não. Há determinados
fatores externos ao da leitura obrigatória e integral de um escritor que são definidores para
dizer se ele é bom ou ruim, como a sua relação com a leitura, a
sua forma de leitura do mundo, expressas em ocasiões como entrevistas,
conversas informais etc. Mas, bons ou ruins escritores, não é sobre isso o que
iremos tratar aqui. É que, da mesma forma que existem os bons e maus escritores
haverá também os bons e maus leitores. E é sobre essas definições que quero tratar.
E necessário lembrar que, muito antes de explorar tais definições, já alguém
que estava do lado de lá, isto é, do lado da escrita, vez sua própria busca para uma conceituação muito própria sobre o bom e o mau leitor. No prólogo do livro Lectures on literature, Vladimir Nabokov elabora um teste
para que o leitor selecione entre as dez opções dadas quatro respostas para a
pergunta “que qualidades deve ter alguém para ser um bom leitor?”. As opções
oferecidas no teste são:
a – deve pertencer a um clube de leitores.
b – deve identificar-se com o herói ou a heroína.
c – deve concentrar-se no aspecto socioeconômico.
d – deve preferir uma narrativa com ação e diálogo ou sem um
dos dois.
e – deve ter visto o romance em filme.
f – deve ser um autor embrionário.
g – deve ter imaginação.
h – deve ter memória.
i – deve ter um dicionário.
j – deve ter certo sentido artístico.
Para Nabokov, se você tiver escolhido os quatro últimos
itens, está de parabéns, você é um bom leitor. O bom leitor não se identifica
com as personagens, porque cada obra cria personalidades únicas, impossíveis de
ser comparadas a algum ser vivo; não é necessário também ter pretensões de ser um
escritor ou viver profissionalmente da escrita. Aos que preferem romances de ação
e diálogos, a agilidade deveria ser um requisito apenas para a ginástica. Os
que só buscam os aspectos socioeconômicos, estes são leitores antropológicos carentes
de imaginação e incapazes de reconhecer a autonomia da ficção.
E a memória? Sem dúvidas, é necessário exercitar a memória
para captar os pequenos detalhes dos quais os bons livros estão sempre
carregados, mas para essas ocasiões a releitura deve ser melhor que a
leitura e a memória, esta só serve para marcar fatos superficiais ou naturais à
primeira vista numa primeira leitura. Ler bem não é somente lembrar o nome do protagonista,
mas também ser capaz de recriar e sentir os detalhes menores, os seus comportamentos,
os gestos, os seus afetos, o tamanho dos espaços, a estatura das personagens. E
num universo em que a personagem é destituída de boa parte do desenho
descritivo concebido pelo escritor, então, a faculdade da imaginação tem uma
valia e tanto. Afinal, como ter em mente uma mulher do médico do Ensaio sobre a cegueira ou uma Blimunda
do Memorial do convento, romances de
José Saramago, ou como sentir o calor do corpo de Raskolnikov em
êxtase de transformações pela tormenta de ser um assassino? Como, se não pela imaginação?
Prestar atenção ao sentido artístico de uma obra é útil ao
bom leitor; para Nabokov alguém do tipo só pode ler bons livros, busca livros
exigentes, livros que lhe desafiem. Nesse ponto sou o primeiro a concordar diretamente com o autor de Lolita
– já perdi as contas das vezes em que disse que o bom livro é aquele que me
desafia a lê-lo, mas sem dizer isso. Afinal, autopromoção não parece ser algo confiável
de um todo. E, no mais, cá estamos: o tempo é tão curto e passa cada vez mais
rápido solapando tudo, que perdê-lo com miudezas só trará mais decepções que
prazer – o famigerado prazer do texto barthesiano.
Por fim, quero recuperar o texto de Iván Thays, de onde
recortei o ponto de partida e boa parte das considerações para estas notas. Quanto ao bom e ao mau leitor, concordamos, há alguns
mitos que merecem ser desfeitos. Um deles é o de que um crítico literário é
necessariamente um bom leitor – pode ser que não. Em épocas de grandes capitais
investidos por determinados editores pode até ser que ele seja apenas um
sujeito bom escrevinhador bem pago para dizer o que a editora quer que os leitores vejam. Recentemente,
estourou por aí, um grande crítico do qual não lembro o nome agora, que vendia
resenhas para falar bem de livros em grandes potentados midiáticos.
Outro mito, diz Thays, é concordar que um bom leitor é o
aquele que lê devagar. Os estudiosos da Estética da Recepção já até desenharam
modelos de leitura que, perdoem-me, não levam a nada. Prender-se nessas
modelagens só fará uma coisa: desviar sua atenção do real propósito da leitura
com o sentimento de culpa ou de avaliação se está cumprindo efetivamente com o
processo. Cada um ler a sua maneira e cada um é capaz de saber em que momento
deve rever a forma de leitura para ter um melhor rendimento. Cada um tem seu
próprio ritmo. E isso é válido para o caso oposto; sim, porque também há o mito
de que quem ler rápido também é um bom leitor.
Um mito já fossilizado entre os que trabalham com a leitura:
a idade adequada para ler determinados textos e todos os que são bons leitores começam
lendo coisas, digamos, mais banais. Devo concordar mais uma vez com Thays,
quando ele diz crer que nem todos os adolescentes que leram a saga Harry
Pottter ou Crepúsculo, ou os que aventuraram com O código da Vinci ou os que vibram com as pitadas pornográficas de
E. L. James tenham ou se convertam nos melhores leitores. Por experiência
própria, comecei a ler, na adolescência com o mais ‘pesado’ dos livros, a
Bíblia, e já mais tarde enveredei por Machado de Assis, Graciliano Ramos,
Aluísio Azevedo, e não adquiri nenhum trauma pela inadequação ou dificuldade
das leituras. Já confessei noutras ocasiões, inclusive por aqui, minha experiência
com Clarice Lispector pelos dezessete ou dezoito anos, quando li, pela primeira
vez um livro seu, A maçã no escuro. Nessa
mesma esteira deve ser desfeito também o mito de que um bom leitor somente ler
os clássicos. Ler os clássicos, diz Iván, é um caminho seguro, porque levará o
leitor a apurar, cada vez mais cedo, seu sentido artístico, mas ler os contemporâneos,
pode ser um ato complementar nesse processo.
Tudo serve para dizer, que é mais difícil definir um bom ou
mal leitor que um bom ou mal escritor. A leitura é resultada de uma complexa
rede de afetos desenvolvida entre o leitor e o livro e isso é algo que se dá
solitariamente e na surdina; não é pois algo que se meça em público e se aponte
um trajeto técnico que o possa a olho nu distinguir um bom do mal do leitor. Vale, sim, é ler. Porque o bom leitor é o que, pelos livros, vê o mundo além das aparências.
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