Lincoln, de Steven Spielberg

Por Pedro Fernandes



Quando as identidades entram em crise é natural que os mantenedores do poder simbólico entrem em cena para – com os fragmentos – engessar coisa que ainda a sustente. Parece ser repetir pela enésima vez isso com os estadunidenses. Se em todos os setores há uma constante reafirmação do statos quo da potência responsável pelo provimento do bom andamento da ordem mundial, também no cinema, os reforços não passam despercebidos até do observador mais leigo. Evidentemente não ser isto algo inédito. Mas, as produções de meados de 2012 para início de 2013 – uma olhada na lista dos concorrentes ao Oscar de Melhor Filme será suficiente para entender – deram uma lapidada nos cacos e reforçaram cada uma à sua maneira as formas de bendizer o seu país.

Lincoln, de Steven Spielberg é um deles. E não seria blasfêmia acreditar que este é o grande favorito ao Oscar de Melhor Filme, mesmo estando concorrendo com outras produções muito mais significativas e dispensando as outras onze categorias a que foi indicado. E não seria surpresa nenhuma se Argo, de Ben Aflleck, repetisse o levantamento de prêmios já desde o Globo de Ouro. Se, Django Livre também chegasse ao prêmio não seria surpresa. Surpresa seria se A hora mais escura que mais mexe que junta os cacos da identidade estadunidense levasse o prêmio; Kathryn Bigelow deve ter mesmo esquecido o porquê levou o prêmio numa sessão aí passada...

Não há o que dizer do filme de Spielberg. Está bem produzido; foge do seu padrão, porque se guia por uma vertente que não necessita tanto assim dos efeitos especiais que fizeram o cineasta conhecido do mundo inteiro. E o filme acaba por cumprir mais uma homenagem do homem que já de homenagens deve estar farto: desde ser símbolo turístico de seu país, num monumental em Washington e em estátuas afora; ter a cara esculpida numa rocha, outro monumento símbolo do seu país e em notas de dólar, um filme sobre si, é para ser visto só como mais uma homenagem e já não é lá essas coisas.

A única coisa merecida de comentário, além da atuação perfeita de Daniel Day-Lewis, é sobre os limites da ética quando os interesses partidários por conseguir determinadas reformas necessárias num âmbito nacional são maiores que tudo, maiores mesmo que os próprios princípios democráticos que regem o país: é que o nobre feito de Lincoln, a 13ª emenda, que terá servido de exemplo do ideal de liberdade perseguido pelos Estados Unidos desde sua origem, foi fruto de negociatas menores, infrações, corruptelas, promessas de fianças e cargos comissionados, embustes, um troca-troca de favores, enfim, nos dias de hoje, um mensalão, para que, enfim, os ideais a emenda fosse aprovada favoravelmente. Agora, veja bem aqueles que ainda querem dizer que o caso estadunidense está longe de ser semelhante ao fato histórico noticiado pela via da balbúrdia midiática brasileira: comenta-se que lá o ato foi isento de atentado a ética política porque foi em nome de um bem coletivo. Quem se guia por essa opinião deverá ter visto outro filme diferente do que vi. A medida teve seus benefícios coletivos, mas se guiou por um interesse individual: o presidente terá movido céu e terra para salvar a própria família da crise interna enfrentada com a vontade de a todo custo o filho único partir para os combates no interior do país.

Aqui chegando parece estar claro que o conflito familiar é utilizado pelo diretor como força motriz para o seu real interesse com o filme – não cabe mais homenagens a Lincoln, já deveras imortal, cabe sim é pensar sobre um pedaço importante da história dos Estados Unidos e o quais foram os pilares para sua construção. Isto é, antes de Lincoln ser um filme cujo protagonista é o presidente, é este um filme cujo verdadeiro protagonista é a própria emenda constitucional.


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