Claraboia, de José Saramago
Por Pedro Fernandes
Edição brasileira de Claraboia. Desde que foi publicado, em 2011, o livro já teve mais de cinco traduções estrangeiras. |
Resisti ao livro durante dois anos. Editado em 2011 no Brasil
pela Companhia das Letras e desde então já na minha prateleira de quase todos os
livros de Saramago, digo que não fui eu quem venceu Claraboia, mas Claraboia
que me venceu. Resisti o quanto pude por uma razão sincera já confessada tantas
vezes ao longo desses dois anos entre os mais próximos. Sei que o bom da leitura é sim o da releitura e alguns romances do
escritor já me passaram pelas mãos em releituras pelo menos seis, sete vezes
(sem exageros, porque nada mais natural para quem se dedica estudar a obra de
um determinado escritor); mas pensar em entrar na livraria e não saber que dali em diante não chegará mais novidades do seu autor favorito é um vazio e tanto. Sei que há planos ainda de que até o fim desse ano seja editado as poucas cinquenta páginas escritas para o romance que Saramago planejava escrever depois de Caim. Infelizmente o plano não se cumpriu – e se a escrita vence a morte, não é caso para o trabalho da escrita, que quem trabalha com letras também é mortal tanto quanto os outros profissionais. Mas, e depois disso?
Por duas semanas já havia findado a leitura do livro e me
dediquei entre os tantos afazeres a recortar a ideias para a composição de um
texto para um congresso ou publicação num desses periódicos acadêmicos – ossos do
ofício. O ensaio anda perto do fim e por isso que resolvi, enfim, traçar algumas
notas para esse romance, que é o póstumo e, portanto, em ordem de publicação
o último, mas em ordem de escrita é o segundo – data de 1953, seis anos depois do
insucesso com Terra do pecado.
Não sei se influenciado por conhecimento da vida do escritor
que vou internalizando nas leituras feitas, nas declarações e
entrevistas que vou assistindo, o fato é que vejo este romance de 1952
com certo peso sobre a própria vida do escritor. Basta que se diga que as ações
da narrativa se dão num prédio onde moram cinco famílias e foi para um ambiente
desses em Lisboa que se mudou a família de Saramago em 1924, quando o pai feito
soldado da guarda municipal, depois da experiência da Grande Guerra entre 1915
e 1918 – fato registrado nas Pequenas
memórias.
José Saramago em Parede, finais dos anos 1950. Foto: Arquivo da Fundação José Saramago. |
Também aí se apresenta um casal de personagens que pelas
características e pelo lugar que ocupam no romance dizem muito dos avós do
escritor, tantas vezes querido e tantas vezes lembrados no correr de sua vida
(não cansará dizer que a menção aos avós no discurso da Academia Sueca quando
da recepção do Prêmio Nobel de Literatura é uma das páginas mais belas dos
escritos pessoais de Saramago). O romance é dedicado a esse avô – Jerónimo Hilário
– e a experiência do sapateiro Silvestre muito se confunde com a experiência da
tradição que representa a imagem de seu Jerónimo; associe aqui a entrada de
Abel, rapaz impetuoso que não quer ter amarras em nada na vida e motivado por
uma extensa experiência de leitura que passeia entre nomes como Dostoievski e
Shakespeare e por uma mentalidade um tanto quanto existencialista e convencida
a, pelo ato de ação sobre mundo, fazê-lo mudar daqui para ali. Como isso não tem
nada de biográfico se também pelos anos de 1950 o escritor terá confessado tantas
vezes sentir-se tomado de uma vontade de quebrar com a monotonia e pasmaceira a
que estavam todos os portugueses atolados até o pescoço?
Mas deixando as especulações biográficas para outra ocasião,
voltemos à compreensão do livro. As ações decorrem na Primavera de 1952 – fato que
é registrado no próprio romance pelas mãos da personagem Adriana, que mantém às
escondidas, como toda menina de sua idade e de seu tempo, um diário, onde
redige sobre o seu cotidiano e seus primeiros traquejos de amor. Adriana é irmã
de Isaura, uma devoradora de livros (lê Eça de Queiroz, lê Diderot, lê, lê); são
filhas de Cândida e moram com uma tia solteirona, Amélia. Na casa só de
mulheres, Adriana trabalha fora e o restante com costuras e estão sempre
reunidas em serões para ouvir o rádio: é que Cândida e Amélia são fissuradas
por Beethoven – admiração também de Adriana.
Noutro ambiente vivem o sapateiro Silvestre e sua mulher Mariana
que alugam um dos quartos da sua casa para o jovem Abel que chega logo no
início do romance e parte no seu fim, para livrar a reputação de Lídia, vizinha
que vive sozinha e é mantida por Paulino. É devido a uma acusação plantada pelo
próprio amante onde Lídia é acusada de se envolver com o rapaz da casa do
sapateiro, que os dois se separam. A ação marca ainda o fim da exploração da
moça pela própria mãe sustentada às suas custas.
Na quarta habitação vivem Anselmo – viciado em futebol,
trabalhador nas gráficas de um jornal e cheio de taras pela vizinha livre – com
sua mulher Rosália – que tem certa inveja da beleza de Lídia – e sua filha, a
jovem datilógrafa Cláudia – que sonha (e muito) ser tal qual a vizinha, livre e
cheia de luxos. E por fim, a casa do caxeiro-viajante Emílio, mantenedor de um casamento fadado sempre ao fracasso, mas que nunca chega ao fim, com a
espanhola desbocada e reclamona Carmem. Os dois têm um garotinho, Henrique.
Uma das páginas com notas escritas a mão do datiloscrito de Claraboia. Foto: Arquivo da Fundação José Saramago. |
E vejam só, todas as histórias desse edifício ficaram
desconhecidas do público até quase dois anos depois da morte do escritor. O
datiloscrito da versão final do livro foi, assim que o escritor deu por
acabado, enviado a uma editora que o rejeitou. Depois seguiu para outra casa a
título de publicação e lá ficou escondido até meados da década de 1980; quando
o autor já era reconhecido (Memorial do
convento e O ano da morte de Ricardo
Reis, por exemplo, dois importantes livros que o consagrou romancista já
estavam publicados) foi contatado para que se publicasse o livro. O interesse
dos editores teve de se render a categórica decisão de Saramago: o livro não sairia
e só viria a lume depois de sua morte e se os responsáveis por seu espólio
assim o quisesse. Se o romance hoje está ao nosso alcance é, sim, graças a
Pilar del Río, viúva e presidenta da fundação que leva o nome do romancista,
que decidiu fazer a obra conhecida.
É um livro que se firma como importante, principalmente para
quem já leu boa parte ou a integralidade de sua obra, observar o escritor em
processo de laboração da escrita e conformação dos temas que viria perseguir ao
longo das publicações a partir de Levantado
do chão, livro que o próprio escritor sempre julgou de bom grado ser o
marco inicial de sua carreira como romancista. Essa observação, entretanto, nada
de inédita, uma vez que o próprio Saramago também admitiu várias vezes que,
para observar a gênese dos temas de sua escrita o leitor astuto haveria de
começar por ler as crônicas, um gênero que o autor cultivou desde cedo, antes
de ser o romancista que é. Depois, tem o Horácio Costa, um dos que pertencem à
primeira geração de estudiosos da obra saramaguiana e até então um dos únicos
que se debruçou sobre a obra primeira de Saramago, terá dito também em várias
ocasiões que a produção do período que antecede Levantado do chão é fundamental para compreensão mais global acerca
da literatura produzida pelo Prêmio Nobel de Literatura.
O texto soará estranho à vista do leitor já adaptado aos
longos períodos, à pontuação diferenciada e modos de composição da narrativa. E
é compreensível. Este não é um romance que tenha a qualidade estética de quem
escreveu trabalhos já clássicos como Memorial
do convento, O ano da morte de
Ricardo Reis, O evangelho segundo
Jesus Cristo e Ensaio sobre a
cegueira, livros que digo serem os melhores da carreira de Saramago e indispensáveis
à leitura para qualquer leitor que não se aventure a estudar sua obra; porque
se isso for o caso, estamos já em outro território. No mais, pela flexibilidade
e simplicidade da narrativa, este Claraboia
vai se firmando como uma das experiências de leitura indicadas para os leitores
iniciantes na obra do escritor português. Ou não. Muito provavelmente, isso é
algo que dependerá do nível de cada um.
Ligações a esta post:
Quando a Fundação José Saramago deu a conhecer da existência desse livro de José Saramago, comentamos por aqui e ainda disponibilizamos o primeiro capítulo da edição de então batizada por A clarabóia.
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