Uma lista de autobiografias indispensáveis (Parte 3)
A chegada às
livrarias de um livro de natureza muito diversa de Umberto Eco, em que o autor
de O nome da rosa volta no tempo para
perscrutar o jovem romancista, fez voltarmos a duas listas de livros publicadas
em 2008 cujo o gênero aparece definido como autobiográfico. O retorno às duas listas
serve para um motivo a mais: ampliar essa biblioteca com outros títulos. Então,
depois de Maksim Górki, Gabriel García Márquez, Doris Lessing, J. M. Coetzee,
Philip Roth, Simone de Beauvoir, Erico Verissimo, Amós Oz, Vladimir Nabokov,
José Saramago (ufa!) tomem nota destes. E relembramos sempre o mesmo recado:
esta não é uma lista definitiva, nem um ranking.
As informações sobre cada livro foram
copiadas dos resumos oferecidos pelas editoras que publicaram a obra no Brasil.
Comecemos então pelo título do escritor italiano.
1. Confissões de um jovem romancista, de
Umberto Eco: antes de se dedicar à ficção Umberto Eco escreveu teoria; foi só
quando tinha quase cinquenta anos. E no alto dos seus setenta anos, novamente o
escritor se reinventa com a revisitação de seus primeiros anos como romancista.
Sem deixar nenhum detalhe de fora e com estilo claro e acessível, a obra revela
todos os segredos envolvendo a construção de obras como O nome da rosa e O pêndulo de
Foucault, um caso raro no gênero
autobiográfico. Além disso, Eco discute questões universais relacionadas à
criação da trama e das personagens e dá uma aula magna sobre a relação entre
ficção e ensaio, forma com a qual se consagrou.
2. De profundis, de Oscar Wilde: em 1895, o
escritor inglês foi preso acusado de sodomia, pela relação que mantinha com
Alfred Douglas, um jovem aristocrata por quem se apaixonara e com quem
compartilha sua visão excêntrica do mundo. A prisão mudou sua vida radicalmente
pelos próximos dois anos, o suficiente para consumir sua saúde e levar à lama
sua reputação. Na prisão, graças a boa relação com os guardas, Wilde pode
continuar escrevendo e, entre outros textos, escreve este De profundis e o célebre poema “Balada do cárcere de Reading”. O
livro nasceu de uma carta escrita a Alfred Douglas; ele não chegou a enviar o
escrito e ele se transformou num registro desse período dos mais conturbados de
sua vida. No texto, Wilde acusa Douglas pela prisão e a falência financeira e
moral, descreve a amizade e os momentos que tiveram juntos e registra os
insultos e a perseguição sofridos pelo pai do amigo. Trata-se de um relato de
amizade, amor, arrependimento, aprendizado e sofrimento – um mergulho ao
estágio profundo de homem que nunca imaginou provar da lama e do esquecimento.
3. Eremita em Paris, de Italo Calvino: o
escritor responsável por revolucionar alguns dos gêneros literários e suas
categorias, também foi capaz de reinventar a natureza do texto autobiográfico.
Numa obra fragmentada e marcada por relatos descontínuos e variados, Calvino
compõe a síntese de toda uma vida de maneira, logo se vê, muito diferente das
extensas narrativas dessa natureza; um texto, portanto, coerente com o tipo de
escrita que forjou ao longo de sua vivência literária. Inscreve-se aí a
trajetória do menino nascido em Cuba, o jovem militante da Resistência às
Forças Nazistas, o membro do Partido Comunista, o homem que foi viver em Paris
para se sentir estrangeiro ou eremita, a vida intelectual, cultural e política
que vai dos anos 1930 ao início dos anos 1980, os embates ideológicos durante a
Guerra Fria, a situação do escritor na
sociedade contemporânea, o trabalho com a escrita. Enfim, um mapa minucioso das
experiências que o fizeram o homem e escritor.
4. Ensaio autobiográfico, de Jorge Luis
Borges: este livro foi pensado inicialmente para ser uma breve introdução à
edição publicada nos Estados Unidos de O
Aleph e outras histórias. Ditado em inglês pelo escritor a seu colaborador
e tradutor Norman Thomas nos primeiros meses de 1970, foi publicado
inicialmente na conhecida revista The New
Yorker em setembro deste mesmo ano. O texto é um dos mais longos do autor
que ficou conhecido pela concisão. Nele, Borges fala de seus ancestrais
paternos e maternos, de sua infância quase isolada do mundo, de suas
experiências ruins na escola e daquilo que ele mesmo chama de “evento
principal” de sua vida: a grande biblioteca de seu pai, da qual ele acredita
“nunca ter saído”. A partir dessas primeiras leituras, quase todas em inglês,
ele traça sua autobiografia literária e intelectual. São informações
importantes para a compreensão sobre a carreira de um dos nomes mais singulares
do século XX. Estão reunidos nesse relato a convivência com amigos como
Macedonio Fernández e Adolfo Bioy Casares.
5. A fazenda africana, de Karen Blixen: a
dinamarquesa que escreveu em língua inglesa foi autora de um dos livros mais
memoráveis do gênero autobiográfico. Embora use mais do dado etnográfico para a
composição da sua obra, o livro toma como ponto de partida a vida amorosa e
infeliz de uma baronesa europeia que se recusa
a assumir seu papel dominante no mundo colonial, numa grande fazenda
africana. O marido, seu primo barão Bror Blixen-Finecke, transmite-lhe sífilis
logo no primeiro ano do casamento e segue sua vida de playboy, enquanto ela se
desdobra sozinha para cuidar da fazenda de café. Está aí o pretexto para
observar com certa agudeza uma extensa galeria de figuras, paisagens e animais;
histórias ouvidas, fragmentos de episódios e análises de cunho antropológico.
6. Itinerário de Pasárgada, de Manuel
Bandeira: em 1954, quanto já então é um poeta consagrado, o autor de Estrela da manhã decidiu sair à cata de
um tempo perdido, em que nele pudesse encontrar o que deu forma às suas
experiências e vivencias com a
poesia. Utilizando de um nome inscrito num dos poemas mais famosos da língua
portuguesa, “Vou-me embora para Pasárgada”, Bandeira escreve não um livro autobiográfico
no sentido puro do termo, mas uma espécie de “primeira biografia estritamente
literária” (cf. Franklin Oliveira) no Brasil. Nesse itinerário, o poeta busca compreender
qual a matéria da qual se nutriu para sua poesia e evoca essa vivência
literária com graça e simplicidade.
7. Infância, de Graciliano Ramos: publicado em 1945, o livro percorre um período que vai dos dois anos à adolescência do escritor. A narrativa acompanha os anos de formação do autor de Vidas secas, seu descobrimento do sertão, sua relação com a dor, a seca e miséria. Entre o imaginado e o vivido, Graciliano compõe um retrato claro e objetivo de sua meninice erguida entre o desprezo social, a grosseria e a educação do castigo a todo custo, o que finda por ser um importante esboço sobre a nossa formação e a história dos costumes. Além desse título, é indispensável a leitura de Memórias do cárcere, a obra escrita quando esteve no porão da ditadura e, logo, outro retrato significativo sobre o horror da repressão ou quando reprimir deixa de ser uma estratégia de mero controle do corpo para ser o controle de uma nação.
8. O menino Grapiúna, de Jorge Amado: o título mais lembrado do escritor baiano
nesse universo de autobiografias é Navegação
de cabotagem, mas esse breve romance tem uma força singela para aproximar-se
da formação literária e da visão de mundo de um dos maiores romancistas da
literatura brasileira. O testemunho do nascimento das cidades no sul da Bahia,
as guerras pela posse de terra e a mistura de culturas servem de pano de fundo
para que Jorge Amado investigue como se deu seu apego por figuras como
jagunços, coronéis, malandros e prostitutas para a modelagem de suas
personagens. O leitor tem contato com as aventuras do tio Alvaro Amado que o
leva para as mesas de jogatina e os bordeis, o jagunço José Nique, o padre
Cabral que apresentou Jorge à leitura de clássicos da literatura portuguesa e
inglesa. É uma obra de profundo sentimento de leve recordação de uma infância
capaz de lhe dar todas as ferramentas com as quais forjaria grande parte do extenso
painel de tipos que forjou.
9. O mundo que eu vi, de Stefan Zweig
(depois publicado com a tradução de Autobiografia: o mundo de ontem): “Fui contemporâneo
das duas maiores guerras. Conheci a liberdade individual em seu grau e forma
mais elevados, e, depois, em seu nível mais baixo em muitos séculos. Fui
festejado e desprezado, livre e subjugado, rico e pobre. Minha vida foi
invadida por todos os pálidos cavalos do Apocalipse, revolução e fome, inflação
e terror, epidemias e emigração. Sob os meus olhos, vi as grandes ideologias de
massa crescendo e se disseminando”. Como austríaco, judeu, escritor, humanista
e pacifista, Stefan Zweig esteve sempre onde os incontáveis abalos que
atingiram seu tempo foram sentidos de maneira mais violenta. Perdeu a Viena de
sua juventude para a Primeira Guerra, a Áustria de sua maturidade para Hitler,
a Europa de sempre para a Segunda Guerra. Exilado no Brasil, definitivamente
arrancado de tudo o que fora e formara seu mundo, ele escreve de memória e de
coração, num intenso exercício de reconstrução, análise e alerta. Concluída às
vésperas de seu suicídio em 1942, o livro tem como protagonista não apenas o
escritor, mas também sua geração. Com sua lucidez habitual e uma dose extra de
emoção, Zweig oferece um vívido retrato sociopolítico de seu tempo – e um guia
para se entender o presente e perceber os contornos do futuro.
10. Autobiografia, de Mark Twain (ainda
inédito no Brasil): o escritor levou os últimos dez de sua vida na escrita de
uma gigantesca autobiografia, o livro foi editado graças a uma série de
instruções deixadas para publicação – só possível um século depois da sua
morte, deixou dito. Ao todo são três volumes organizados por Robert Hirst, da
Universidade da Califórnia, a partir de mais de cinco folhas manuscritas. A
obra está recheada de apreciações nada lisonjeiras sobre figuras de seu tempo;
Twain não poupa nem mesmo o presidente Theodore Roosevelt. O escritor expressa de forma franca e direta
suas opiniões em matéria de política e religião: critica o imperialismo dos
Estados Unidos para com Cuba, Porto Rico e as Filipinas, chama o patriotismo de
um refúgio dos canalhas e condena o trato dos cristãos estadunidenses no
tratamento de imposição do seu credo religioso em África enquanto formam patrões
treinados para linchar negros. Ou seja, não compôs apenas personalidade e obra:
a consolidação de sua paixão pela literatura, iniciada nos anos narrados em
Infância; as primeiras experiências da juventude, como o sexo; e a entrada no
mundo do trabalho.
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Atualização feita em dezembro de 2014.
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